Magia Enoquiana: de John Dee aos dias de hoje

A Magia Enoquiana foi praticada e estudada em diversas manifestações ao longo dos últimos séculos, passando por John Dee, pela Golden Dawn, Aleister Crowley e acadêmicos contemporâneos. Mas, afinal, de onde veio e onde está hoje a tal Magia Enoquiana?

Magia Enoquiana: de onde veio?

Segundo o Antigo Testamento, Deus criou o mundo através de uma língua. As palavras que ele proferiu foram registradas no Livro do Discurso de Deus. É nesse livro que podemos encontrar, além da história da criação do mundo, as chaves para as portas do céu e detalhes sobre o passado, presente e futuro.

Ainda no Paraíso, Adão dominava fluentemente essa língua e, portanto, se comunicava perfeitamente com os anjos e com Deus. Mas perdeu essa capacidade de comunicação quando foi expulso do Jardim do Éden. Teve, portanto, de criar uma outra linguagem para se comunicar com a sua família e com os demais que vieram depois dele.

Aí entra Enoque, que dá nome ao sistema Enoquiano, por ter estabelecido novamente contato com esses anjos. Ele teria transcrito, através do contato com esses anjos, 366 livros que buscavam realinhar novamente as linguagens de ambos os lados. Durante o dilúvio, essas obras foram perdidas e, portanto, os últimos registros dessa tentativa de comunicação com os anjos. Seria essa uma história para esconder as palavras de Deus do alcance de todos ou uma desculpa para “dar como perdido” algo que realmente nunca existiu?

John Dee e Edward Kelley: recuperando a língua dos anjos

Muitos teóricos tentaram reconstruir, através de pesquisas e abordagens através do hebraico antigo, a língua celestial, mas nenhum deles havia chegado a resultados satisfatórios. É aqui que se destacam John Dee e seu vidente, Edward Kelley.

Trabalhando inicialmente com uma série de grimórios salomônicos (como, por exemplo o Livro das Sombras de Honório, que havia sido escrito apenas dois séculos atrás), os dois travaram contato novamente com os mesmos anjos com os quais Enoque teria conversado.

Esses anjos, além de retransmitirem os ensinamentos dados ao antigo profeta, ensinaram ainda a Dee e Kelley uma nova série de operações mágicas. Entre estas operações, havia a forma correta de convocar os anjos dos planetas e como conversar, inclusive, com Enoque, em sua nova morada. Revelaram também profecias sobre o fim do mundo, os mecanismos de funcionamento do universo, que se dividiria em dezenas de Aethyrs, ou éteres, e se mostraram bastante insatisfeitos com o atual estado da humanidade.

É natural e compreensível que, diante de revelações tão incríveis (fossem elas reais ou não), John Dee tenha nutrido um interesse de vida inteira por esta via de exploração do desconhecido. Todos os escritos e livros registrados por Dee e Kelley receberam posteriormente o nome de Magia Enoquiana.

Magia Enoquiana na Golden Dawn

Desde sua fundação, a Golden Dawn almejou incluir, entre seus trabalhos, a Magia Enoquiana. Eles tiveram acesso aos escritos de Dee, mas apenas a uma fração deles, que continha a parte do sistema de skrying e como chamar os anjos das estrelas. Muitos livros faltavam nessa coleção; portanto, o sistema desenvolvido em cima desses diários de Dee era muito diferente do que a Magia Enoquiana “original”, por assim dizer.

A organização deste sistema reconstruído trazia outras maneiras de ler os nomes dos anjos, como chamá-los e como aplicar os quatro elementos nas Fortalezas. Estas diferenças caracterizam o sistema de Magia Enoquiana da Golden Dawn como algo bastante distante do sistema de Dee.

A Magia Enoquiana da Golden Dawn era encarada como uma forma de evocar, contatar e comandar diversos espíritos. Esta variação da Magia Enoquiana lançava mão de artifícios curiosos, como o jogo de Xadrez Enoquiano, desenvolvido por S. L. MacGregor Mathers e W. Wynn Wescott, usado primariamente como meio de divinação.

Hoje, os diários de Dee são facilmente encontrados em sua forma completa, até mesmo fora das grandes bibliotecas, das ordens iniciáticas e dos círculos acadêmicos. Qualquer leitor e estudante ocultista que esteja disposto a gastar o seu latim pode mergulhar na Magia Enoquiana. Talvez, se no século XIX houvesse essa facilidade de acesso à obra, os estudos da Golden Dawn teriam tomado rumos completamente diferentes.

Aleister Crowley e a Magia Enoquiana

Uma das mais importantes bases do conhecimento mágicko de Aleister Crowley veio da tradição da Golden Dawn. Depois de alguns anos como membro da Ordem, Crowley dominou as metodologias que lá aprendeu, e estava ciente de que a Golden Dawn não havia reproduzido fielmente o sistema recebido por Dee e Kelley.

Assim, optou por criar um novo sistema funcional para explorar os Aethyrs. Esta exploração era uma forma de melhor compreender como funcionam as engrenagens dos diversos planos de existência. A grande marca registrada da abordagem de Crowley consistia em inovar, baseado em uma experimentação pessoal do sistema.

Em uma tentativa de invocar esses anjos, o magista relata ter sentido a aproximação de um anjo, com grandes asas de águia, e que esse anjo teria trazido palavras apocalípticas. Depois deste episódio, suas experiências tiveram uma pausa de quase uma década, até a sua vivência na Algéria, em 1909.

Em 17 de novembro desse ano, Crowley chegou à cidade de Argel, no norte da África, com seu pupilo Victor Neuburg. A viagem tinha, inicialmente, propósitos unicamente “recreativos”, mas terminou com Crowley relatando um conjunto de vinte e oito visões. Este período é relatado com mais detalhes na biografia O Olho no Triângulo. Os relatos da experiência direta de Crowley ao explorar os Aethyr estão reunidos em A Visão e A Voz, e figuram entre as mais importantes fontes da doutrina Thelêmica e da literatura contemporânea da Magia Enoquiana.

A influência de Crowley vai muito além das fronteiras de Thelema. Os experimentos do magista com os Aethyrs se tornaram paradigmáticos em diversas correntes ocultas e sua influência nos caminhos posteriores tomados pela Magia Enoquiana é de vital importância para a tradição esotérica ocidental.

Magia Enoquiana Hoje

Pode-se dizer que seria virtualmente impossível que uma só pessoa desse conta da hercúlea tarefa de dar unidade a um sistema enoquiano coeso. Tal empreendimento passaria, necessariamente, por estudar em profundidade a profusão de material manuscrito de John Dee (em latim, diga-se de passagem) e compreender o sistema reconstrucionista da Golden Dawn. Também seria necessário cruzar todas estas referências com o sistema inovador de Aleister Crowley e com as experiências registradas por ele. Não seria possível chegar tão alto sem subir nos ombros de gigantes.

Por volta da década de 1990, com a maior facilidade de comunicação trazida pela Internet, estudiosos acadêmicos e praticantes de diversas vertentes de sistemas enoquianos passaram a se comunicar e trocar experiências. Este foi um ponto de virada para a Magia Enoquiana.

Havendo toda uma comunidade de aficionados deste renascer enoquiano, cada qual com suas especializações, temos hoje uma visão mais próxima do que seria, exatamente, o sistema recebido (ou desenvolvido) por John Dee. E, consequentemente, é muito mais fácil, nos dias de hoje, apontar em que pontos a Golden Dawn acertou e em que pontos errou. A abordagem de Crowley, ainda que seja declaradamente inovadora e que não se proponha a seguir engessada por metodologias ancestrais, ainda encontra diversas similaridades com a visão neo-enoquiana que emergiu na academia nos últimos trinta anos.

Elos

Todas as principais referências da Magia Enoquiana – John Dee, Edward Kelley, a Golden Dawn, Aleister Crowley e os enoquianos contemporâneos – têm abordagens distintas entre si. Mas essa é, afinal, a essência da magia: não se trata apenas de repetir fórmulas, mas de explorar o desconhecido, receber novos conhecimentos e conquistar novos poderes, mesmo que sobre si mesmo. Não seria possível termos o conhecimento sobre Magia Enoquiana que temos hoje se qualquer um dos elos dessa corrente não tivesse sido forjado.

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