“A Essência da Qabalah Prática” foi publicado pela primeira vez exatamente um século atrás, em julho de 1923, como um artigo no periódico The Occult Review (Vol. 38, nº 1). Ele é um dos dez textos que integram o primeiro volume das obras completas de Frater Achad, que serão lançadas pela Penumbra Livros com o título Omnia in Uno.
A nossa intenção não é que este artigo represente uma exposição completa dos Mistérios da Qabalah Sagrada, mas sim apresentar um breve esboço sobre algumas das principais doutrinas que possam guiar o estudante a uma compreensão mais clara do Sistema Qabalístico como um método de extrair a Infinidade interior.
O modelo das Dez Sephiroth, ou Emanações Numéricas, forma a base do trabalho. Ao erguer sobre estas fundações os andaimes do nosso Templo, podemos aprender a restaurar nosso Equilíbrio perdido, cancelando os “Pares de Opostos” que normalmente nos obcecam.
Esse processo pode ser descrito brevemente assim: antes de qualquer manifestação, o Supremo era Nada. Ainda que isso seja inconcebível, pode ser parcialmente compreendido se considerarmos o Ain Suph, ou Espaço infinito, seguido pela potencial existência da Luz Infinita.
É apenas ao concebermos a Luz Infinita como concentrada em um ponto Central que surge a primeira Ideia positiva. Essa Luz Concentrada é chamada de Kether – a Coroa –, a Primeira Sephira. A partir daí, todo o resto transcorre praticamente da mesma forma como a luz pode ser dividida nas cores do espectro.
A próxima Ideia mais elevada é a da Sabedoria, representada por Chokmah – a Segunda Sephira ou Emanação. Equivale à ideia do Logos, a Palavra da Criação, que no Início estava com Deus, e que também era Deus. Essa é a grande Palavra Criativa – O Fiat1 Divino – e representa a inteligência mais elevada do mundo arquetípico.
1 N.E.: Em latim, imperativo do verbo “fio”, que significa “acontecer”, “resultar”, “ocorrer”. O texto em latim da bíblia Vulgata, em Gênesis 1:3, “dixitque Deus fiat lux et facta est lux”. Na tradução ACF, temos “E disse Deus: Haja luz; e houve luz”.
Em seguida, em pé de igualdade com a Sabedoria, vem o Entendimento – Binah, a Terceira Sephira –, a intuição mais elevada, capaz de interpretar a Palavra corretamente e transmiti-la às esferas inferiores. Esse é o mundo criativo da Qabalah, a Grande Substância Mãe, energizada pela Vida e pela Vontade Divina.
Essas três – Luz, Vida e Substância – formam a Tríade Superna, una e indivisível. Pois a Vida é a substância da Luz, e a Segunda e Terceira Sephiroth são apenas aspectos da Substância Viva que é a própria Luz.
Depois chegamos ao mundo formativo, composto das seguintes seis emanações:
Chesed ou Misericórdia, balanceada por Geburah ou Severidade, formando assim dois grandes pilares que suportam o arco da Trindade. Essas ideias balanceadas estão harmonizadas por uma terceira, a sexta Sephira (Tiphereth), que as equilibra e é chamada Beleza ou Harmonia.
Em seguida, encontramos a tríade de Vitória (Netzach, a Sétima Sephira), balanceada pelo Esplendor (Hod, a Oitava Sephira), e equilibrada pela Fundação (Yesod, a Nona Sephira).
Todas essas esferas acima estão resumidas no mundo material, a Décima Sephira, que é chamada de Malkuth ou o Reino. Essa esfera pende das demais, e na realidade é una com Kether, pois tudo procede do Um e está dentro do Um. No entanto, para que possamos aprender a compreender a natureza da unidade, devemos antes contemplar aquilo que é diverso e aparentemente complexo. As limitações de tempo, espaço e circunstância fazem com que isso nos seja necessário no atual momento de nosso desenvolvimento.
Mas o ideal perante nós é retornar à Concepção Pura da Unidade, livrando-nos assim da ilusão da dualidade e realizando aquilo que é chamado de Grande Obra.
Se o Modelo Qabalístico tivesse terminado com a produção de Malkuth, o Reino ou universo material, nós seríamos forçados a admitir que o processo criativo é de degeneração. E assim nos deve parecer, de nosso ponto de vista limitado, até que aprendamos o Modelo da Redenção e dele nos beneficiemos.
Chokmah, Sabedoria ou a Vontade Superior, nós chamamos de Pai; Binah, Entendimento ou Intuição, representa a Grande Mãe; as próximas Seis Sephiroth estão centradas em Tiphereth, o Filho, e representam o Intelecto, enquanto Malkuth (o Reino ou Alma Animal, aquele que percebe e sente) nós chamamos de Filha.
A Filha deve se casar com o Filho e assim se tornar a Mãe – a verdadeira consorte do Pai – antes que tudo seja reabsorvido na Coroa da Luz. Em outras palavras, pela via do intelecto, podemos controlar nossa natureza animal. Em seu devido tempo, também podemos entender através da intuição, que por sua vez é capaz de receber a Sabedoria do Pai. Assim nos tornamos verdadeiros representantes de Deus na terra, capazes de fazer a Sua vontade assim na Terra como ela é feita nos céus.2
2 N.E.: Vide Mateus 6:10.
Os Qabalistas prosseguem, postulando uma série de Inteligências Graduadas mais elevadas que a humana. Essas são as Inteligências Celestiais, os governantes das Sephiroth. Elas refletem e reproduzem as Ideias Divinas, e as transmitem ativamente para a Iluminação do homem e para o controle da Natureza. Assim, cada uma delas é, em si mesma, tanto ativa quanto passiva.
A razão humana também é ativa e passiva. A razão propriamente dita é o aspecto ativo; o lado passivo é normalmente chamado de intuição. Essa intuição é capaz de absorver a verdade de cima e de baixo. A razão ativa é capaz de formar uma tese, antítese ou síntese a respeito das verdades a ela apresentadas pela intuição.
A razão-natural pode ser encontrada na ordem e na inteligibilidade de todas as coisas naturais, de acordo com sua forma e com o material de que são feitas.
Pode-se dizer que todas as coisas corpóreas possuem três camadas de existência. Elas existem como Ideias na Mente do Logos; materialmente, existem em si mesmas; e, espiritualmente, na mente das Inteligências Criadas. É importante que vislumbremos essa ideia tripla de existência, pois isso esclarece muitas coisas que de outra forma nos seriam obscuras.
Se nós, por exemplo, percebemos uma mesa, devemos nos lembrar que somos da ordem das Inteligências Criadas; a mesa existe espiritualmente em nós. O que é a mesa em si nós não sabemos, nem somos capazes de compreender com certeza sua natureza como uma Ideia na Mente do Logos.
Assim, as coisas podem nos parecer imperfeitas, enquanto na verdade elas são perfeitas, exceto para nossa ideia limitada a respeito de sua natureza.
A Grande Obra consiste em corrigir nossa visão distorcida, tornando-nos capazes, assim, de perceber todas as coisas à Luz Alva da Verdade, sem a coloração criada pelas limitações de nossos pontos de vista.
A única forma pela qual podemos realizar isso é obter aquilo que se pode chamar de uma perspectiva ou visão de mundo isenta de distorção. O objetivo de todos os Grandes Ensinamentos é nos dar tal visão da Criação como um todo, para que sejamos então capazes de cooperar conscientemente com o cumprimento do Propósito Divino.
Considera-se que todas as Inteligências Celestiais são interiormente unidas com todas as coisas, e que as contêm, de forma espiritual. Desta forma, a Grande Obra é a união do Microcosmo com o Macrocosmo.
Também é dito que todas as inteligências mundanas são capazes de trazer as coisas para dentro de si de uma forma espiritual, e que, proporcionalmente à amplitude de tal realização, a inteligência e a coisa em questão se unificam. Aqui temos a chave para o uso da “Árvore da Vida”, ou Modelo Qabalístico das Sephiroth e das Inteligências Celestiais. Conforme escalamos os “caminhos” desta “árvore”, devemos gradualmente absorver todas as coisas do universo, de forma espiritual, unificando-nos com elas. Isto deve ser realizado em passos graduais, representados pelos graus da Grande Ordem. Cada passo tomado deve ser completamente dominado antes de seguir para o próximo. Nós devemos aprender a balancear e equilibrar todas as coisas conforme escalamos, pois não pode haver cumes falsos em nossa Pirâmide Mística, ou aros faltantes em nossa Grande Roda.
A Filha – a Vontade da Natureza – deve ser unida ao Filho – a vontade pessoal, que torna o homem mais do que um mero animal e lhe dá o poder de escolha. Além disso, o Intelecto – ou Filho – está naturalmente acima do tempo e espaço, e é capaz de conter o tempo e espaço, bem como tudo que está dentro do tempo e do espaço.
Portanto, por meio de Dhyana, o místico transcende essas limitações; e, ao se tornar um com elas, as absorve dentro de si. Mas o “eu” diminuto não existe mais, pois engloba a natureza do Eu Superior ou Sagrado Anjo Guardião. É isso que significa destruição do ego; não uma diminuição do conceito do eu, mas um reconhecimento da natureza do eu em seu aspecto mais amplo.
O eu diminuto vê a natureza como algo extremamente complexo; há tantas coisas a se conhecer que esta tarefa parece ser interminável e impossível. A Qabalah nos ensina a agrupar todas as ideias em suas naturezas e correspondências fundamentais. Assim, conforme progredimos, somos capazes de conhecer um número cada vez maior de coisas, à luz de um número cada vez menor de ideias definitivas. Os trinta e dois Caminhos da Sabedoria nos habilitam a classificar todas as coisas do universo em termos de trinta de dois; a partir daí, seguimos reduzindo nossas ideias definitivas e aumentando o campo que elas cobrem, até chegarmos à Unidade.
A fórmula do 5º=6□ (de Adeptus Minor, em Tiphereth) é representada pelo Pentagrama e o Hexagrama. O Homem, o Microcosmo, é simbolizado pelo Pentagrama, composto pelos Quatro Elementos coroados pelo Espírito. O sistema solar está contido no Hexagrama, com suas correspondências planetárias, e isto representa o Macrocosmo.
O Homem tem de aprender a trazer o Macrocosmo para dentro de si, a absorver espiritualmente as Ideias representadas pelas Inteligências Planetárias e Solar; pois é assim que se realiza esta parte do trabalho. Ele obtém o conhecimento e conversação do Sagrado Anjo Guardião ou Eu Superior. Para além disso, existe o grande universo estelar, do qual todo homem e toda mulher é uma estrela.3 Ele deve absorver as Ideias desta esfera e, ao mesmo tempo, reconhecer que cada átomo é uma estrela em seu próprio ser. Assim, por fim, ele chegará ao Entendimento, o Trono da Grande Mãe.
3 N.E.: Vide AL I:3.
Então ele, que é chamado de Nemo, absorve a sabedoria do Pai, o Logos, para que a seu tempo ele possa não só entender, mas querer e criar de acordo com o Modelo Divino. Ele será iluminado pela Luz Única da Coroa sobre sua cabeça; e ele também deve absorver essa luz, para que o não-eu se torne eu, e para que seja completado o último estágio da fórmula de Solve4 da Grande Obra. Então, essa Luz deve penetrar cada vez mais profundamente na matéria, até que o Plano da Criação esteja completo.
4 N.E.: Uma das etapas do processo alquímico.
Lembre-se dessas palavras: coisas existem porque Deus as conhece. O homem conhece coisas porque elas existem.
E mais: o homem ascende das coisas até as Ideias; Deus desce das Ideias até as coisas.
Assim, portanto, tens as chaves do Grande Portal em tuas mãos.
Agora é importante considerarmos mais uma vez a própria essência do Processo Qabalístico e a natureza de seu mistério dos Números como base para todas as Ideias.
Se obtivermos sucesso em reduzir nossas Ideias a uma base numérica, seremos mais capazes de lidar com elas e trazê-las de volta à Unidade.
As Dez Sephiroth nos dão uma base em escala decimal para todas as nossas principais Ideias, que devem ser agrupadas de acordo. Os Vinte e Dois Caminhos que as conectam, baseados nas letras do alfabeto Hebraico, que também é numérico, nos possibilitam ligar estas ideias e trafegar de um conjunto para outro com facilidade e certeza perfeitas. O Modelo dos Quatro Mundos – o arquetípico, o criativo, o formativo e o material – nos permite aumentar o número de coisas conhecidas, ao considerarmos que as Sephiroth e os Caminhos existem simultaneamente em todas elas; e, ao mesmo tempo, classificar todas as ideias elementares em termos quaternários. Essas, coroadas pelo Espírito, criam o verdadeiro Microcosmo, o homem, o Pentagrama. Nossas principais Ideias Universais serão resumidas no Hexagrama, como já foi dito. Ao unir Pentagrama e Hexagrama, uma Estrela de Onze Pontas nos dá a Chave do Æon e a palavra abracadabra como nossa fórmula mágica. Assim, nos unimos à Palavra – o Logos – e, finalmente, ao Alento Divino que a produziu.
Novamente, lembre-se dos meios Qabalísticos de reduzir todas as palavras às suas bases numéricas: pois em hebraico, cada palavra também é um número. Assim, podemos
descobrir a palavra e o número de nosso próprio ser, e nosso lugar no Esquema Criativo. As correspondências entre palavras de valores numéricos similares nos ajudarão a formar galáxias de palavras – que são homens e mulheres – viajando em grupos rumo a uma direção em comum, sem fricção, cada uma em sua órbita. Assim havemos de compreender o mistério dos Céus Estrelados, o corpo de Nossa Senhora Nuit. Pois assim como cada átomo de nossos corpos é em si um pequeno sistema solar, assim também somos nós no corpo da Mãe dos Céus, e ela é energizada pelo Ponto Invisível que não é, mas que é a Vida de Tudo.
Lembre-se, também, que quanto mais universais as ideias e pensamentos que obtivermos, mais próximos estamos de pensar o pensamento divino, que é o próprio Universo. Há apenas Um Pensamento, o Pensamento definitivo que é Todas as Coisas. Normalmente, aquilo que se pode pensar não é verdadeiro – como nos dizem os Hindus – pois até que alcancemos o Ponto Suave, todas as coisas são apenas relativas, assim como a verdade.
Mas a Razão mais Elevada, que está em Deus e que é Deus, é absolutamente uma.
Deus conhece todas as coisas a partir da Ideia Única, que é idêntica ao Seu Ser.
Tradução de Breno Zaccaro
Revisão e edição de Vinicius Ferreira