Música e Magia, Parte I: Tudo Começa na Grécia

Texto por Tiago de Lima Castro

Quem nunca escutou a frase: “Quem canta, seus males espanta”? Além de um ditado popular, ela aponta um poder presente na música em atuar sobre a realidade de forma a espantar seus males. Por mais inocente que soe tal ditado, pensemos em nossas experiências com música. Quem nunca foi envolvido por um ritmo e começou a marcá-lo, sem mesmo pensar, com os pés, ou quiçá passou a dançar? Quem nunca sentiu uma estranha nostalgia, ou alegria, ou tristeza, ou outros sentimentos ao ser afetado pela música? Como sons organizados, não necessariamente acompanhados de palavras, podem nos conduzir a movimentos ou emoções tão diversas? Como podem instrumentos ou vozes, ao vibrarem o ar, e este, ao influir sobre nossos ouvidos, ter tais efeitos tão diversos?

Estas experiências apontam um caráter mágico na música, pensando na magia como formas de interferir sobre a realidade. Tal aspecto mágico é algo que permeia as diversas concepções sobre música que perpassam as histórias da humanidade.

É importante, antes de continuarmos, estabelecermos algum conceito de música para facilitar a reflexão. As letras de canções influem sobre nós; contudo, aqui pensaremos não o efeito mágico da palavra, mas tal efeito em sons organizados em melodias, ritmos, harmonias, contrapontos, entre outros, para formar obras musicais. Pensaremos a música no aspecto melódico e harmônico desta, focando no efeito direto dos sons, com ou sem texto.

Música e Ritual

Ao voltarmos ao passado, o mais antigo possível de se pensar ou imaginar, encontraremos todos os rituais permeados de música, porém, de forma tão orgânica que não consigamos separar a música executada do ritual em si. No livro O Som e Sentido, escrito por José Miguel Wisnik, pode-se acompanhar o quanto a música, em suas estruturas internas, está diretamente ligada a rituais, a práticas mágicas e à própria cultura na qual o ritual é praticado. A ideia de que a música participa como acessória a rituais xamânicos, mágicos, místicos ou religiosos, ou seja, como um elemento para ajudar a entrar em determinado clima é algo bem mais recente do que parece, pois em grande parte da história narrada ou não narrada da humanidade a música e o ritual são tão interligados a ponto de não ser possível separar um do outro exatamente.

Pensemos nas práticas de meditação com mantras: em sua maneira de compreender o rito da meditação, os mantras são partes que auxiliam a prática ou são a prática em si mesma? Nos ritos de umbanda ou candomblé, os ritmos da percussão são auxiliares ao rito ou são o próprio rito? Em nossa mentalidade tendemos a pensar nestes aspectos musicais como partes do rito que auxiliam a chegar a determinado estado mental; contudo, estes são partes tão intrínsecas que são o próprio rito.

A Música na Tradição Ocidental

Neste texto, as partir daqui, focaremos o Ocidente, por este apresentar uma espécie de raiz cultural comum. Por mais que não pareça, o termo Oriente não faz tanto sentido devido à diversidade de culturas presentes neste, enquanto a ideia de Ocidente indica uma raiz cultural comum a estas diversas culturas, no caso a Grécia antiga, a Hélade, mesmo esta tendo absorvido elementos diretamente dos Egitos e de povos do Oriente próximo. Se mergulhamos na Índia veremos uma série de processos musicais visando alterar a realidade, como na China, Japão, África, ritos indígenas no Brasil de casa das flautas no Xingu, entre muitos outros, que se mostram como grandes universos a serem explorados individualmente.

Música e Musas

Na antiga Hélade, desde a mitologia era muito claro o quanto a música tinha poderes sobre as pessoas, como no medo dos marinheiros, expresso na Odisseia de Homero, de sirenes e sereias, ou Pã com sua flauta, entre muitos outros. A mousiké, termo grego para música, remonta à ideia de uma atuação direta das musas  através do músico, sendo a Harmonia a musa responsável pelo que chamamos hoje de música exatamente, já que a mousiké incluía um conjunto maior que abrangia música, dança, ritmos, textos com determinado dialetos, entre outras coisas. Curiosamente, enquanto Apolo é um músico racional, que canta acompanhado de sua lira; Dionísio toca sua flauta e, exatamente por não cantar, é tido como irracional.

O termo grego para encanto, epaiodé, veio do termo cantar, aiodé. Na língua portuguesa esta relação ainda se mantém, de forma que se pode pensar no encanto como o uso do canto, música e poesia, para fins específicos de atuar sobre a realidade.

Vale dizer do valor que a Hélade dava à figura do Rapsodo: aquele que canta a tradição poética de forma a ensinar a tradição, pois recitar um texto ou poema, mesmo o épico que contava uma estória, era cantado, contudo, a tradição, como expresso no Íion e no Fedro de Platão, cantando em um estado que chamaríamos de transe, mas os antigos denominavam delírio. Percebamos que aqui não há diferença efetiva entre música, arte e rito, sendo tais separações uma racionalização nossa, para não dizer anacrônica, de práticas antigas. Isso que nem estamos pensando nos ritos dos mistérios de Elêusis, entre outros.

Os Órficos: a Primeira Ordem Esotérica

O mito de Orfeu é a base da primeira ordem esotérica do ocidente: os Órficos. Ordem esotérica pois seus ensinamentos eram secretos e seus membros, ao mesmo tempo que praticavam ritos públicos oficiais, praticavam os ritos específicos da ordem, a qual também apresentava uma concepção de mundo diferente da oficial. Características como vestuário, símbolos específicos, processos iniciáticos, entre outros, já estavam presentes. Não podemos dizer que entre outros povos já não haviam ordens esotéricas nesse sentido específico; contudo, é possível perceber que as ordens iniciáticas existentes no Ocidente parecem remontar ao modelo órfico de ordem esotérica. Os ritos, seguindo o mito de Orfeu, eram basicamente musicais, nos quais a prática musical purificaria a alma de seus praticantes, para estes ascenderem espiritualmente. Ritos musicais já eram uma constante, a especificidade dos órficos é utilizá-los para purificação de si. Afinal, Orfeu pode ir, caminhar e retornar do Hades exatamente pelos poderes encantatórios de sua música, sendo em algumas versões uma reencarnação de Dionísio, em outras, filho de Apolo, o que dá margem a especular que essa dualidade apolínea dionisíaca seja intrínseca a Orfeu, o qual era o modelo de alguém ascenso espiritualmente para os órficos. Contudo, esse ponto é pura especulação deste que vos escreve.

Os sacerdotes órficos eram chamados de magoi, ou seja, magos. Isso indica uma influência persa no orfismo, como também se verificam fortes influências egípcias. Contudo, percebemos aqui a ideia de uma ordem esotérica guiada por magos, nos quais os membros também visavam tornarem-se magos através de suas práticas musicais. Para mais informações sobre o orfismo e sua relação com a filosofia, vale e pena ler a obra Fragmentos Órficos, da pesquisadora acadêmica Gabriela Guimarẽs Gazzinalli, a qual traduziu e comentou textos órficos, alguns cerimoniais, ao português.

Na próxima parte desta série, falamos da famosa sociedade dos Pitagóricos, de como Aristóteles começou a demonizar a música e como isso se refletiu nos próximos séculos, no Cristianismo e até mesmo na ciência.

Tiago de Lima Castro é professor de filosofia e música, ou seja, um doido que abraçou sua ignorância. É articulista do Música e Sociedade e tem um podcast sobre música, filosofia e outras loucuras. Acompanhe Tiago nestes links: Twitter / TianixPodcast / Música e Sociedade

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