Por Vinicius Ferreira, editor da Penumbra Livros
Turismo religioso não é novidade. Povos pré-históricos já faziam longas e árduas peregrinações relacionadas à sua religiosidade. Na Antiguidade, as pessoas já viajavam a outras nações para visitar centros de culto dessa ou daquela divindade. A justificativa (furada, é claro) para séculos a fio de guerra santa – as Cruzadas! – foi possibilitar que cristãos europeus visitassem os locais sagrados de sua fé, no Oriente Médio, tomado por seus “rivais” muçulmanos. Até hoje, Jerusalém é o destino de milhares de peregrinos de todo o mundo – cristãos, judeus e muçulmanos. Tudo isso porque essas crenças envolvem locais sagrados, que podem e devem ser visitados.
Mas e se o mais sublime templo da sua religião estiver dentro de você – mais precisamente, na sua glândula pineal? Você pode achar que isso é uma piada, mas não é. Essa é a crença do Discordianismo*, a religião mais centrada e pé no chão que você pode encontrar por aí.
* Para quem não sabe disso, o Discordianismo (que muita gente resume como “Zen para ocidentais”), é a religião mais democrática do mundo. Todo fiel pode ser Papa (mas nem todo mundo pode ser Santo), e Éris está no comando. Você pode ler mais sobre o Discordianismo nestes textos, ou, se preferir, pode ler esta curta e particularmente mau-humorada crônica.
O duplo sentido de “viajando”
Se o Muro das Lamentações, a Caaba e o Santo Graal, todos juntos e misturados, estão dentro de você, como fica esse negócio de peregrinação para o discordiano? Como fazer suas férias de fim de ano parecerem super espiritualizadas? Assim fica difícil, e esse é o drama dos milhões de Discordianos por todo o mundo.
É claro, você pode meditar profundamente, lamber um papelzinho, ou ter um sonho muito maluco, e visitar a sua glândula pineal. Isso é o mais próximo que se pode chegar de botar as mãos na sua própria glândula pineal sem cair na perigosa armadilha da cirurgia crânioencefálica.
Tudo bem, mas e peregrinação de verdade? Botar o pé na estrada e ir, de fato, a algum lugar sagrado?
A boa notícia é que nem tudo está perdido.
A má é que as coisas já não são mais as mesmas.
Santuário Brunswick, o Berço do Discordianismo
Como todas as coisas boas (e ruins), o Discordianismo nasceu em algum lugar.
No subúrbio de Whittier, em Los Angeles, há uma pista de boliche, e dentro deste local, no ano de Nossa Senhora da Discórdia de 3125 (1959*), Éris Se revelou à Força da Maçã Dourada pela primeira vez.
Principia Discordia, p. 00053
Você encontra este relato em detalhes no Principia Discordia – mais precisamente, nas páginas 00007 e 00008. Essa mítica pista de boliche ficou conhecida como o Santuário Brunswick, e tornou-se local de peregrinação para os Discordianos.
Ué! Mas então é possível fazer uma peregrinação discordiana, oficial e sancionada? Bem, mais ou menos.
Imanentizando a Escatologia
Ao contrário do que a maioria das religiões organizadas apregoam, os discordianos não são encorajados a peregrinar ao Santuário Brunswick. (É isso que dá ser uma religião desorganizada.)
Está escrito no Principia Discordia, página 00053, que quando uma Peregrinação deste tipo ocorrer pela quinta vez, o mundo vai acabar.
E Cinco Dias Antes Desta Ocasião O Apóstolo Malaclypse o Ancião Caminhará pelas Ruas de Whittier Trazendo uma Placa para Todos os Letrados Lerem o Seguinte: “DESTRUIÇÃO”, como um Alerta da Destruição Próxima e Iminente de Todos os Homens. E Ele Sinalizará Este Evento ao Procurar os Pobres e Distribuir para Eles Preciosos BUTTONS DO MAO e Whittier Será Conhecida como A Região do Baque por Estes Cinco Dias.
E é por isso que apenas planejar essa peregrinação é considerado suficiente, e nunca é preciso fazê-la de fato.
Planejando a minha peregrinação
Como bom discordiano que sou, decidi planejar a minha peregrinação, mesmo com pouquíssimas chances dela acontecer.
As chances dessa peregrinação aos arredores de Los Angeles são baixas porque (1) estou sem dinheiro; (2) não tenho visto americano; (3) aliás, meu passaporte está vencido; (4) Trump está no governo. Seguindo a Lei dos Cinco, é claro que há um quinto motivo, mas eu só vim a saber disso mais tarde. (O zelo pela integridade do mundo não consta como um motivo válido.)
O primeiro passo para a peregrinação foi descobrir exatamente onde eu estava indo. Isso implicava identificar a localização exata do Santuário Brunswick. Bom, imagino que haja um bocado de boliches espalhados pela maxi-região de Los Angeles. Whittier é um pedaço relativamente pequeno, e afastado do burburinho de Holywood, Santa Monica, Beverly Hills e esses outros lugares chiques que vemos nos filmes. Mas mesmo assim – nos Estados Unidos, joga-se boliche desde a época de Fred Flintstone. Seria como achar uma agulha no palheiro.
(Imagem: OpenStreetMap)
Por sorte, alguém já fez esse trabalho para mim. Ninguém menos do que o brilhante Adam Gorightly, o atual Guardião dos Arquivos Discordianos, fez um levantamento dos boliches da região que estavam abertos desde a década de 1950, próximos da antiga casa de Kerry Thornley (um dos autores do Principia Discordia). E ele chegou a um lugar específico: Friendly Hills Bowl. Se você quiser ler todo o relato de como o Sr. Gorightly chegou até lá, e como ficou definido que Friendly Hills Bowl foi realmente o berço do Discordianismo, leia aqui sua jornada na íntegra (em inglês).
(Imagem: Davidag, no Flickr)
Um Lugar do Caralho!
Me empolguei! O Santuário Brunswick, conhecido pelos Infiéis como Friendly Hills Bowl, é o boliche típico dos filmes americanos. Letreiro de neon um tanto decadente na entrada, uma arquitetura estilo Jetsons, num lugar menos badalado da cidade… Eu poderia ir lá com a parafernália completa: cartaz escrito DESTRUIÇÃO, buttons do Camarada Mao, tudo que tem direito. Comprei a ideia.
(Imagem: Historia Discordia)
Se eu conseguisse resolver os quatro problemas – dinheiro, visto, passaporte e Trump – eu realmente cogitaria ir nessa magnífica Peregrinação Discordiana, e foda-se o fim do mundo.
Mas havia uma quinta complicação, e por ela eu não esperava.
Friendly Hills Bowl fechou em 2015.
(Imagem: Keith Durflinger/San Gabriel Valley Tribune)
Pequenas Igrejas, Grandes Negócios
Se você é mais novo e acha que os cinemas sempre estiveram dentro dos shopping centers, saiba que nem sempre foi assim. Os cinemas ficavam na rua, como grandes lojas. Mas aos poucos, o movimento foi diminuindo, e igrejas neopentecostais começaram a comprar todos os imóveis de cinemas para construir seus templos. Eu sempre achei isso muito triste – um local de cultura ser substituído por um de religião.
E foi aí que eu me peguei na contradição. Porque me vi mais triste ainda ao saber que um templo religioso, um lugar sagrado, de peregrinação, um lugar que eu pretendia visitar, foi fechado para dar lugar a uma coisa qualquer. Seria bastante irônico se ele tivesse virado um cinema. Mas não. Ganhou uma demão de tinta sem graça e acabou virando um mercadinho sem graça.
(Imagem: Google Street View)
E foi assim que morreu o Santuário Brunswick. Não foi o primeiro Santuário a ser destruído, ou mesmo ressignificado. O Muro das Lamentações é uma parede que sobrou do lendário Templo de Salomão (não confundir com o que fizeram em São Paulo). O Santo Graal, que os Templários roubaram do Oriente Médio, está hoje escondido na Pirâmide do Louvre. E o Santuário Brunswick virou um mercadinho metido a besta.
O mundo está a salvo?
Bom, agora que não existe mais Santuário Brunswick, isso quer dizer que não há mais peregrinações discordianas até lá, e que o mundo está a salvo?
Eu acho que não. Ainda dá tempo de imanentizar a escatologia.
O Santuário Brunswick ainda tem um endereço: 15545 Whittier Blvd, Whittier, CA, 90603. O prédio ainda está de pé. A memória dos Pioneiros Discordianos ainda vive em nossos corações.
Ao meu ver, a Peregrinação a este Lugar Sagrado ainda é viável – e digo mais: é mais desejável do que nunca.
Não seria muito discordiano um bando de malucos se reunindo na pista 23 de um boliche suburbano, bebendo cerveja e falando bobagens. O que seria verdadeiramente discordiano seria um bando de malucos com cartazes de DESTRUIÇÃO, entregando buttons com a cara de Mao Tse Tung para os clientes de um mercadinho na Califórnia e pregando a destruição iminente do mundo como o conhecemos.
Eu ainda tenho esperanças. Me faltam o dinheiro, o visto e o passaporte. Não necessariamente nessa ordem. Pau no cu do Trump.
Se você tiver uma ideia maluca para viabilizar essa excursão ao Santuário Brunswick, diga aí nos comentários. E se você quiser saber mais sobre Discordianismo e o Principia Discordia, aproveite para comprar o seu.
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