Texto por Claudio Ellovitch
Sou suspeito para escrever sobre a graphic novel THTRU, não só porque sou um dos principais responsáveis por ela existir e ser o que é, mas também porque estou aqui, em 2018, cerca de quatro anos depois de sua primeira tiragem ser impressa, ainda empenhado (ou talvez obcecado) em desvendar todas as nuances ocultas deste trabalho. Nuances estas que escapam completamente de um primeiro olhar, e que neste caso, escaparam até mesmo do olhar de seus próprios criadores.
O celebrado ocultista Éliphas Lévi dizia que: “Alguém, preso numa cela, sem outros livros senão o Tarô, pode, em poucos anos – se souber usá-lo – adquirir todo o conhecimento universal e ser capaz de falar sobre qualquer tema com inigualável precisão e eloquência”. E o que eu vim a descobrir é que THTRU é muito como o Tarô, e que o Tarô está incrustrado em sua espinha dorsal de uma forma que nem os roteiristas, nem o desenhista previram. Mas vamos começar do começo…
Em 2012, eu estava me preparando para realizar um filme de curta metragem em parceria com um produtor e roteirista de Hong Kong chamado Stephen Cheng. O Stephen tinha acabado de editar uma série de livros, chamada DEAR GOD, do artista indiano Amit Desai e procurou produzir um filme em que estes livros seriam retratados. Não era para ser como uma peça publicitária, ele queria criar um universo em que os livros pudessem existir. Amit deveria representar o papel principal e sua poesia chamada LIGHT deveria estar de alguma forma presente no filme… essas eram as duas únicas exigências não negociáveis quando entrei no projeto como diretor e co-roteirista.
Como comecei a trazer muitas influências dos quadrinhos para a concepção estética e narrativa do filme, Stephen achou que seria interessante criarmos também uma graphic novel juntamente com o curta. A primeira grande decisão que tomamos em relação a isso foi que o roteiro da HQ não seria o mesmo que iríamos filmar; seria uma espécie de sonho do protagonista em que memórias suas se unem a premonições simbólicas. A segunda grande decisão foi trazer o veterano Rodolfo Zalla para ilustrar a graphic novel.
Eu sugeri o nome do Rodolfo juntamente com o de outros do panteão das HQs de horror brasileiras que tanto admiro: Júlio Shimamoto, Mozart Couto, Franco de Rosa, Watson Portela, Ataide Bráz, Rubens Cordeiro e Osvaldo Sequetin. Zalla foi escolhido com base na sua trajetória nos quadrinhos e, por estar aos 81 anos (naquela época) ainda se reinventando com novos experimentos gráficos.
Stephen e eu nos colocamos a escrever o roteiro da HQ tendo em mente a poesia LIGHT, as imagens dos livros da coleção DEAR GOD, as referências de trabalhos anteriores do Rodolfo Zalla, um argumento básico que o Stephen havia escrito para o curta e minhas próprias influências, provindas de trabalhos autorais anteriores. Nós passamos por alguns argumentos (pré-roteiros com todos os principais pontos da narrativa) iniciais até chegarmos à um que decidimos como o final. A cada nova versão, o argumento dava saltos cada vez maiores para longe de uma narrativa convencional e em direção a uma história completamente simbólica, carregada de elementos da filosofia oculta. Fui responsável pela maior parte dos elementos de horror e psicodelia enquanto Stephen se ocupou do quadro geral e das sutilezas mais humanas e introspectivas. Havia apenas o argumento, e o roteiro foi sendo escrito em etapas durante a pré-produção do filme. E o roteiro da HQ veio a influenciar o roteiro do filme.
A história é sobre transcendência: a jornada de um personagem em trajes de monge que deixa sua terra natal para cumprir o destino de trazer para o mundo conhecimentos místicos (na forma de sete livros) de um lugar além de onde se pode alcançar em estados ordinários de consciência. Nessa jornada, ele encontra guias e tem uma premonição sobre sua própria morte nas mãos de alguém muito poderoso, materialista e hedonista. Ele também sonha com uma jovem que pode ajudá-lo a manter os livros fora do alcance daquele que lhe privará de sua vida. Descrevendo assim, parece ser uma narrativa simples, já que usamos intencionalmente de clichês que poderiam facilitar alguma conexão com pensamento racional, porém, na prática, ela é contada de forma onírica e fragmentada, importando-se mais em transmitir uma sequência específica de símbolos do que contar uma história comum.
Durante o processo de criação desta graphic novel, com a participação ativa de Zalla é que estes símbolos tomaram forma e vida. Aconteceu da seguinte forma…
Nos tempos disponíveis entre reuniões com artistas e artesãos envolvidos na produção do curta, eu ia visitar o Rodolfo Zalla em seu estúdio que funcionava dentro de seu apartamento. A cada visita, eu levava novas páginas do roteiro e algumas imagens de referência (decididas por mim e pelo Stephen) impressas em folhas de papel, já que o Rodolfo não se aproximava de nada ligado à informática. Eu e o ele líamos juntos as páginas do roteiro, discutíamos sobre elas, conversávamos sobre as referências e então o deixava em paz para trabalhar. Após alguns dias, quando eu retornava, ele já tinha páginas em estágios bastante avançados no desenho (já não trabalhava mais com esboços e partia diretamente do layout para as ilustrações finais), mas ainda assim havia bastante flexibilidade para ajustes: Zalla colava pedaços de papel para redesenhar áreas da página e tinha também outros truques. Ele parecia muito um alquimista trabalhando nesta obra, misturando técnicas e materiais heterogêneos de forma experimental, mas sempre segundo princípios rígidos que ele aperfeiçoou durante décadas.
A pré-produção do curta (que neste ponto já tinha nome de PRAY) terminou e iniciaram-se as gravações. Em um determinado dia o Rodolfo Zalla foi nos visitar no set. O filme e o quadrinho foram influenciando um ao outro. Eu levei fotocópias de algumas páginas já finalizadas pelo Rodolfo para servir de referência para o diretor de fotografia do PRAY (Carlos Firmino) e para o departamento de arte (chefiado pelo Wagner Moloch), também levei storyboards e fotos dos bastidores do filme para o Zalla. O tráfego criativo entre as duas obras foi livre e engrandecedor. Imagens, objetos, cores e perspectivas surgiram destas trocas.
Rodolfo Zalla trouxe muito de sua própria experiência e métodos para somar ao resultado final da graphic novel, ele não hesitava em se afastar do roteiro e das referências quando achava necessário e suas contribuições foram quase sempre aceitas e bem vindas. Após o fim da ilustração de todas as páginas, Stephen pediu algumas alterações a mais para o Zalla e eu dispus o texto da poesia de Amit sobre os quadros usando o computador, mais tarde o próprio Amit escreveu o texto manualmente em sua própria caligrafia seguindo a disposição sugerida por mim. A poesia se uniu às imagens de forma inesperada, provocando novos significados para elas. Tanto o filme PRAY quanto a graphic novel (que só então veio então a se chamar THTRU) foram marcados por coincidências significativas ou sincronicidades e pela presença de uma força inexplicável nos cercando. Não tenho muitas dúvidas que nos tornamos um veículo para a manifestação desta força.
Meses depois que recebi as primeiras cópias de THTRU, eu estava começando a estudar mais profundamente o tarô e consegui identificar claramente os 22 Arcanos Maiores que haviam sido retratados de forma oculta nas páginas pelo contexto, pelas formas e cores, e pela distribuição dos elementos nas páginas. Foi uma descoberta bem significativa que surpreendeu a todos envolvidos, mas não para por aí… Um estudo mais detalhado mostra indícios que os 56 Arcanos Menores também estão ali representados. Ainda estou desvendando mais: gestos, sinais e indícios de rituais pertencentes a diferentes tradições ocultistas que abrangem desde o xamanismo primordial até a Kabbalah e Thelema. Existe muito mais do que o olho destreinado e a mente fechada conseguem ver nestas 64 páginas com bordas douradas.