Nossa civilização ocidental do século XXI está acostumada com religiões e fés pasteurizadas e sanitizadas. O cristão médio que vai à missa no domingo, por exemplo, faz questão de fazer vista grossa para as histórias sangrentas que estão na Bíblia. Não só o cristianismo: toda religião antiga o bastante tem um lado violento, bárbaro, que hoje em dia a maioria das pessoas teima em fingir que não existe. Não é de se espantar, portanto, que tradições que se mantêm mais fiéis às suas origens sejam vistas com maus olhos pela sociedade como um todo.
Imagine, por exemplo, um crânio humano dentro de um caldeirão de ferro. Esta é uma descrição simplista da prenda ou nganga, um dos principais objetos do Palo Mayombe (saiba mais sobre o uso de ossos no Palo Mayombe). Talvez essa imagem cause algum desconforto para o observador médio inserido no contexto ocidental contemporâneo. E o desconforto que essa imagem traz é consequência direta da grave miopia cultural que afeta a maior parte das pessoas. Afinal de contas, o uso religioso e ritualístico de cabeças humanas é muito mais comum do que se supõe.
Cefalomancia: Conversando com as Cabeças dos Mortos
Às vezes as cabeças são apenas cultuadas, mas na maioria das tradições elas são usadas como formas de oráculo. Existe até mesmo um nome para isso: cefalomancia. Essa tradição vem pelo menos desde o Paleolítico superior, e talvez evidências arqueológicas ainda não encontradas venham a comprovar uma antiguidade ainda maior. A ideia de cabeças de mortos que se comunicam com os vivos está presente até mesmo na cultura pop.
Lembra daquela música, Psycho Killer, que volta e meia toca por aí? A banda que a toca chama-se Talking Heads – literalmente, Cabeças Falantes. E você se lembra do Orfeu nas histórias do Sandman? (OK, sem spoilers…) Entre o Paleolítico e 1993, ano da última aparição de Orfeu nas páginas de Sandman, muitas cabeças falantes estiveram presentes no imaginário das mais diversas culturas ao redor do mundo.
Cabeças Oraculares na Grécia
A civilização grega não foi inventou a tradição da cefalomancia – talvez a versão grega venha de uma influência indireta das práticas mesopotâmicas com cabeças oraculares – mas foi uma das culturas que mais amplamente fez uso dessa técnica peculiar.
A cefalomancia era tão difundida na Grécia que aparentemente conversar com cabeças falantes não era uma grande coisa. Generais levavam cabeças oraculares para aconselhá-los nas guerras. Cabeças eram usadas como oráculos, e viravam points de peregrinação – como era o caso do Oráculo de Delfos.
Por ser uma prática comum, havia diversas receitas para criar a sua própria cabeça oracular. Elas quase sempre incluíam ervas mágicas, mel (para preservação), serpentes (profundamente oraculares), e encantamentos que podiam ser escritos, falados ou cantados.
Uma das cabeças oraculares mais famosas da Grécia antiga foi a do próprio Orfeu. Existe a lenda grega, e existe a versão Neil Gaiman, que aparece nas páginas de Sandman. Leia as duas, adote a que achar mais interessante como a legítima, mas saiba disso: ambas retratam Orfeu como uma cabeça oracular, protegida e conservada em uma ilha remota.
A tradição grega de cabeças falantes não terminou na antiguidade – há registros de feitiços cefalomânticos bizantinos bem posteriores, profundamente inspirados nas técnicas da antiguidade grega, mas já influenciados por simbolismo cristão.
Odin e a Cabeça de Mímir
O Odin da mitologia nórdica está frequentemente envolvido em buscas pelo conhecimento, chegando a fazer grandes sacrifícios pessoais em troca de sabedoria. A história de como ele recebeu as Runas talvez seja a mais famosa, seguida da de como ele perdeu seu olho. Mas há também a história de como ele conseguiu a cabeça, viva e falante, de Mímir, o gigante, portador de um grande conhecimento.
Mímir foi morto de forma traiçoeira, e sua cabeça foi enviada para Odin – que, por acaso, era seu sobrinho. Odin prontamente limpou a cabeça de Mímir com ervas, proferiu alguns encantamentos, e logo a cabeça voltou à vida, tornando-se um oráculo e uma fonte de sabedoria, mesmo para os deuses. Repare que há elementos em comum com as fórmulas gregas: ervas e encantamentos como elementos fundamentais para trazer a cabeça de volta à vida.
Por meio de ervas mágicas Odin embalsama a cabeça de Mímir e a utiliza como fonte de saber … as imagens de oráculos falando com cabeças … também são comuns às práticas xamânicas.
Johnni Langer (org.) – Dicionário de Mitologia Nórdica: Símbolos, Mitos e Ritos, p. 306-7
E já que falamos de xamanismo…
Cabeças Oraculares no Xamanismo
Não só de mesopotâmia, antiguidade clássica e Europa medieval vive o homem. As culturas tribais do norte da Ásia mantiveram durante um longo tempo seus costumes muito pouco alterados, preservando seus hábitos através da oralidade. Estudar estas culturas, até mesmo nos tempos modernos, é uma das melhores formas de entender como se comportavam as civilizações que não nos deixaram relatos escritos.
Os Yukaguirs, em particular, usavam as cabeças oraculares de forma um pouco diferente:
Até o século XIX ainda eram venerados os crânios dos xamãs mortos: incrustados numa estatueta de madeira, eram guardados numa caixa. Nada se fazia sem antes proceder à adivinhação pelos crânios; o método utilizado para isso era o mais comum na Ásia ártica: o maior ou menor peso do crânio equivalia, respectivamente, a um “não” ou a um “sim”, e a resposta do oráculo era respeitada à risca.
Mircea Eliade – O Xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase, p. 274
A Nganga do Palo Mayombe
Como você já deve ter percebido a essa altura, o uso de cabeças humanas em tradições religiosas ou mágicas não é nada de mais. No Palo Mayombe não é diferente. Na cosmovisão do Palo Mayombe, a cabeça é vista como o assento do intelecto, e manifesta raciocínio lógico e racional. A alma é racional, e reflete a criatividade divina de Nzambi, a forma mais elevada de divindade nessa tradição.
E por isso crânios humanos são usados na nganga, o caldeirão que é uma das principais “armas mágicas” do palero. A nganga é mais do que um monte de ossos e galhos dentro de uma panela – ela é o assentamento de um espírito vivo, altamente inteligente, e que realmente faz parte da família do palero.
Achar que a presença de uma cabeça humana em uma prática religiosa automaticamente caracteriza uma tradição como maligna é, no mínimo, uma questão de desconhecimento. Mas também pode ser intransigência, ou mesmo estupidez.
Se você quiser entender melhor o Palo Mayombe, Nicholaj de Mattos Frisvold escreveu o livro mais completo sobre o tema – Palo Mayombe: O Jardim de Sangue e Ossos, que foi lançado em português pela Penumba Livros.