Caveira não é Sinônimo de Necromancia!

Caveira não é Sinônimo de Necromancia!

Conheceríamos bem melhor muitas coisas se não quiséssemos identificá-las com tanta precisão.

 

Goethe, J. W.

É essa ânsia por rotular que estabelece e reforça grande parte de nossa ignorância – ignorância no sentido de desconhecimento. E desconhecimento é o que impera quando se fala de religiões de matriz africana, em particular aquelas que não se estabeleceram originalmente no Brasil. A associação do Palo Mayombe com necromancia é um bom exemplo disso.

Entre no Google e faça uma busca de imagens, procurando Palo Mayombe. Você vai ver diversas imagens de prendas ou ngangas, contendo ossos e crânios. Se você desconhece essa tradição, provavelmente reforçará o estereótipo de um sinistro culto necromante. Mas não é bem assim.

Veja bem, não estamos dizendo que Palo Mayombe não trabalha com os mortos. É claro que trabalha. Mas isso, por mais estranho que pareça, não faz dessa tradição um culto necromante.

Palo Mayombe trabalha com ossos, com espíritos dos mortos, e até com sacrifícios de animais. Tudo isso é verdade. Mas isso não quer dizer que ele seja uma tradição essencialmente necromante.

Os Mortos estão por toda parte

Se lidar com os mortos é sinônimo de necromancia, a família tradicional brasileira tem um problema. É claro que diversas culturas de origem africana lidam com os mortos de formas que podem parecer assustadoras. Pense, por exemplo, nas figuras do Exu Caveira, de Papa Legba, e até mesmo dos famosos zumbis. Mas o trabalho com os mortos não é, de forma alguma, exclusividade das culturas de origem africana.

Considere, por exemplo, as religiões asiáticas, como o xintoísmo. O culto aos ancestrais é uma peça importante dessas tradições. E elas não são vistas com maus olhos por causa disso. Você pode argumentar que essas fés só estão presentes do outro lado do mundo – o que seria uma grande inverdade. Mas tudo bem, temos outros bons exemplos de cultos aos mortos bem debaixo dos nossos narizes.

O espiritismo, que se estabeleceu no Brasil, é essencialmente um culto aos mortos. É claro, existe a figura de Deus, de forma muito similar ao cristianismo. Os mortos são vistos como espíritos. Alguns destes espíritos são perdidos, ou obsessores, ou iluminados, mas estão todos mortos. Se você é um cristão fervoroso, provavelmente considera o espiritismo tão terrível quanto o Palo Mayombe. Mas então, vamos um passo adiante. Considere, por exemplo… o cristianismo.

Culto aos Mortos no Cristianismo?

Sim, o cristianismo. Deus, obviamente, não é um defunto. Mas vá a qualquer igreja católica e você verá, em lugar de destaque, uma cruz, representando Seu filho, que morreu por nós. Preste atenção: Jesus Cristo morreu por nós, e voltou dos mortos três dias depois, para ascender aos céus, salvar a humanidade, etc. A doutrina cristã, veja só, é uma forma de adoração a Cristo. É, o nome já diz, não tem como negar. E essa figura central de adoração… bem, é um homem morto, que voltou à vida.

O que dizer sobre os santos? Foram homens e mulheres que levaram vidas puras, tocadas por Deus. Alguns santos viveram vidas pecaminosas, mas foram profundamente alterados pela fé em seu Deus. Mas uma coisa todos os santos têm em comum: eles foram homens e mulheres que viveram… mas que já morreram. E hoje são adorados pelos fieis de todo o mundo.

(Nem vamos mencionar o canibalismo literal que ocorre na Eucaristia; isso é assunto para outro dia.)

Você pode argumentar que a ressurreição de Jesus foi metafórica. Um praticante de Palo Mayombe pode, então, retrucar dizendo que os mortos de sua tradição também não caminham em carne e osso pelos munansos. Você pode argumentar dizendo que os santos não são objeto de adoração, apenas Deus deve ser adorado. O contra-argumento palero é bastante evidente: Palo Mayombe também tem um Deus único, que se chama Nzambi, e os mortos só nos ajudam a resolver as coisas aqui na Terra. Nesse aspecto, não há diferença prática.

Se você for uma pessoa sensível, talvez entre em estado de negação. Mas os fatos estão aí: o Cristianismo é um culto aos Mortos tanto quanto as tradições de matriz africana, o que inclui (mas não se limita a) Palo Mayombe.

Necromancia x Nigromancia

Agora que está estabelecido que o Palo Mayombe é, sim, um culto dos mortos (idêntico, neste aspecto, ao cristianismo), resta desmistificar o aspecto da necromancia. A etimologia, neste momento, é nossa aliada:

Comumente entende-se o necromante e o nigromante como idênticos entre si, mas é suficiente destacar que necro, de trabalhar com carcaças e cadáveres, difere de niger, negro, escuro, uma referência direta aos trabalhos com espíritos noturnos.

 

Nicholaj de Mattos Frisvold – Palo Mayombe: O Jardim de Sangue e Ossos

Mais do que qualquer aspecto chamativo e sensacionalista, o intercâmbio com espíritos é uma parte fundamental do Palo Mayombe. Há o trabalho com os espíritos dos mortos, e também com os Nkisi – que são diferentes aspectos de Nzambi, o único Deus, e que inclusive costumam ser sincretizados com santos cristãos.

A necromancia pode ser entendida como parte de um tema maior, a Teurgia. É possível sugerir que o equivalente ao palero seja encontrado no nigromante. O nigromante era alguém versado no intercâmbio com os espíritos. Era basicamente o tipo de praticante que operava em ambos os polos do eixo do mundo.

 

Nicholaj de Mattos Frisvold – Palo Mayombe: O Jardim de Sangue e Ossos

Dentro deste contexto, o Palo Mayombe pende muito mais para o lado da nigromancia do que da necromancia. É verdade, a diferença é sutil. E também é verdade que este culto envolve a presença constante dos mortos. Mas as coisas acontecem no Palo Mayombe de forma bastante similar no xintoísmo, no espiritismo, e até no cristianismo, por mais que a verdade possa ser desagradável para algumas pessoas.

Se você quiser entender melhor sobre Palo Mayombe, sua melhor referência é Palo Mayombe – o Jardim de Sangue e Ossos, de Nicholaj de Mattos Frisvold. Este livro é a obra de referência mais completa já escrita sobre essa tradição tão denegrida, e está sendo publicada pela primeira vez no Brasil pela Penumbra Livros.

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Caveira não é Sinônimo de Necromancia!