Frater Optimus, nosso colunista, é um mago de outros tempos, e em sua coluna sempre escreve sobre suas impressões (nem sempre muito favoráveis) sobre o cenário do ocultismo contemporâneo.
Hoje, sua coluna sai um pouco da programação normal, porque Frater Optimus conseguiu (finalmente) estabelecer um debate em bom nível com um de seus críticos.
Você pode ler o post original aqui, e a réplica aqui. Para ler a tréplica, basta continuar a leitura a partir desse ponto.
Eu pensava que esse dia não ia chegar nunca. Desde que eu comecei a escrever esta coluna, pude perceber que as pessoas têm opiniões divididas sobre o que eu penso. Algumas acham que eu tenho razão, outras acham engraçado, outras discordam. Mas a maioria delas se limita a fazer um comentário imbecil, dispensável e que não agrega valor algum. Acho que isso é um sintoma dessa pós-modernidade que vivemos hoje, em que os computadores tornaram todas as relações extremamente rasas.
Eu cheguei mesmo a acreditar que jamais nesse ambiente de Internet eu viria a receber uma réplica extensa e cuidadosa como a que recebi de um certo Frater A. E por isso eu agradeço a esse colega, e gostaria de expor minha tréplica. De forma civilizada, na forma de um embate de ideias, visando uma maior compreensão de ambas as partes e, acima de tudo, sem essa barbárie de comentários de duas linhas que caracteriza as comunicações contemporâneas. Do jeito que deve ser feito.
Frater A. comentou sobre minha coluna a respeito de ordens iniciáticas, e o que o incomodou foram, em especial, minhas opiniões sobre a A∴A∴.
Veja bem. Frater A. se disse “incomodado” com minhas observações. Existe algo mais satisfatório do que incomodar os outros? Eu mesmo não me incomodo com qualquer coisa. Se alguém me acusar, por exemplo, de ser um vaso de plantas, eu não me incomodarei com isso, pois sei que não há um pingo de verdade nessa afirmação. Já se alguém me acusar de estar ficando senil, talvez eu me incomode. Apesar da idade avançada, eu me considero dono de meu perfeito juízo – mas não descarto a possibilidade de que o tempo esteja pesando sobre a minha memória, por exemplo.
Em suma, para que uma afirmação incomode, é preciso que ela tenha um fundo de verdade ou, no mínimo, uma possibilidade real de possuir um fundo de verdade. E se eu incomodei o caro Frater A., significa que ele parou para refletir, e que talvez minhas opiniões sejam uma verdade desagradável que ele reluta em reconhecer.
Algumas das minhas críticas à A∴A∴, como por exemplo a esquizofrenia e a miopia inerentes à estrutura da ordem, a necessidade inerente da quebra das próprias regras e da ação de agentes externos, foram consideradas por Frater A. como “frágeis e de resposta óbvia”. De qualquer forma, eu gostaria de saber o que ele (ou outros irmãos) tem a dizer a respeito delas.
Mas a passagem que de fato incomodou Frater A. foi a seguinte:
(…) supondo que o superior [dentro da estrutura da A∴A∴] seja uma pessoa menos competente do que seu subalterno, como essa pessoa mais competente vai conseguir evolução dentro da hierarquia da ordem? Para mim, este modelo está fadado ao fracasso.
Frater A. argumenta que, no âmbito da A∴A∴, o instrutor não precisa ser o melhor do mundo para instruir com sucesso seu discípulo. Que ele só precisa ter passado por uma determinada experiência para poder orientar o discípulo sobre como transpor um obstáculo que ele mesmo já transpôs.
Eu consigo concordar com uma parte: é uma bobagem esperar que seu instrutor (no que quer que seja) seja o melhor do mundo, ou que tenha fama e renome. Mas acredito que haja uma falha lógica nessa argumentação.
Tudo bem, basta que o instrutor tenha passado por uma determinada situação para poder mostrar o caminho para quem ainda não passou por ele. Mas e se o caminho seguido pelo instruído for diferente? Porque, convenhamos, não existe um único caminho para chegar a um mesmo destino. Nesse caso, o modelo da A∴A∴ está, necessariamente, (1) restringindo os caminhos a serem seguidos ou (2) deixando os instruídos à deriva. E, neste segundo caso, creio que mais prático seria não ter instrutor algum.
Até aqui, estou abordando a situação em que o instrutor e o instruído caminham na mesma velocidade; mas o instrutor chegou antes e, portanto, estará sempre um passo à frente. Esse seria o cenário ideal em um mundo perfeito. Mas não existem cenários ideais, e o mundo está longe de ser perfeito. Assim, proponho um exercício de imaginação.
A estrutura organizacional da A∴A∴ é constituída de dez graus iniciáticos, sem contar com o de estudante, etc. Pergunto: hoje, quantas pessoas na Ordem podem afirmar possuírem o grau máximo, de Ipsissimus? Certamente ninguém pode responder esta pergunta com absoluta certeza, dada a natureza míope e esquizofrênica da Ordem – em tese, apenas um Magus poderia conhecer seu instrutor Ipsissimus. E este mesmo Magus não conheceria nenhum outro Ipsissimus, se as regras da Ordem forem seguidas. Mas o ponto a que quero chegar é o seguinte: os Ipsissimus certamente são poucos, se é que existe algum nos dias de hoje que não seja uma farsa autoproclamada.
Então, suponhamos que a estrutura da Ordem siga uma progressão geométrica: apenas 1 Ipsissimus, 2 Magus, 4 Magister Templi, 8 Adeptus Exemptus, 16 Adeptus Major, 32 Adeptus Minor, 64 Philosophus, 128 Practicus, 256 Zelator e 512 Neófitos. Certamente os números não são esses, mas eles servem bem para ilustrar.
Vamos imaginar um certo Frater Bobus, um Philosophus que, após anos de Ordem, esgotou suas capacidades de evolução. Ele nunca passará deste ponto. Ele assume a instrução de um Neófito – um desses 512 Neófitos hipotéticos, chamado Frater Spertus. Frater Spertus, ao contrário de Frater Bobus, tem em si o potencial para alcançar o grau de Magister Templi.
Frater Spertus galga paulatinamente os degraus hierárquicos da Ordem. Passa rapidamente de Neófito a Zelator, em pouco tempo chega a Practicus, e… para por aí. Frater Bobus nunca permitirá que ele passe daquele ponto. Por mais que Frater Bobus saiba, em seu âmago, que Frater Spertus tem potencial para ir muito mais longe, algumas coisas o impedem de fazer com que seu instruído cresça na hierarquia: (1) a estrutura organizacional não permite que Frater Spertus siga adiante, (2) Frater Bobus não é competente o suficiente para fazer com que ele suba dentro da hierarquia e, por último, mas não menos importante, (3) Frater Bobus jamais assinará seu atestado de incompetência perante seu(s) superior(es) e permitirá que um pirralho que mal entrou na ordem ultrapasse o ponto onde ele mesmo encalhou.
Isso pode acontecer com inúmeras variações e em praticamente todos os graus. Percebem o quanto a estrutura da Ordem é falha e fadada ao fracasso?
Agora considere que o tal único Ipsissimus venha a falecer. Como fica a Ordem? O Magus mais antigo se reserva o direito de ascender a esse grau? Ele poderia se autoproclamar um Ipsissimus? Esta iniciação seria legítima ou apenas um devaneio egoísta? E quem poderia julgar? Quem garante que um dos Magister Templi não é muito mais digno dessa iniciação, espelhando o exemplo de Frater Bobus e Frater Spertus? Todas essas perguntas me levam a questionar: não seria a alta cúpula da Ordem inteiramente formada por incompetentes que se autoproclamam mestres, impelidos pelo ego e isentos de fiscalização?
Encerro minha tréplica com um breve comentário a respeito da última consideração de Frater A., que diz:
Me pergunto se para ser treinador do Usain Bolt, é preciso correr mais do que ele, ou se possuir uma sabedoria acerca da aplicação de conceitos em prol de um resultado mais eficiente já é benéfico para o homem mais rápido do mundo.
Eu considero essa visão um tanto limitada e “dentro da caixa”. Se Usain Bolt quiser ser o homem mais rápido do mundo, talvez ele não precise de um treinador de corrida, ainda que seja o melhor treinador do mundo. Talvez este treinador não esteja pensando fora da caixa, e não seja a solução para que Usain Bolt seja o homem mais rápido do mundo. A mentalidade de “corrida”, que é a única que o treinador conhece, pode ser limitante. Talvez Bolt, para ser o homem mais rápido do mundo, precise de um carro de Formula Indy, um avião de guerra, ou mesmo um foguete. Enquanto Bolt seguir esse treinador, ou instrutor, que traz para ele a melhor técnica de corrida do mundo (infelizmente, uma filosofia limitante), talvez ele consiga ser o melhor corredor de curta distância do mundo. Mas certamente nunca será tão rápido quanto poderia ser.
Deixo aqui meu convite ao Frater A. para que possamos levar essa conversa adiante. E se você, leitor, se sentir “incomodado” com o que eu digo – não só neste texto, mas em qualquer outro – pare de se comportar como uma criança. Pare de reclamar com seus amiguinhos da Internet. Dê a cara a tapa. Faça como Frater A. Eleve o nível do diálogo.