Nosso colunista, Frater Optimus, é um mago das antigas, e costuma soltar o verbo reclamando das invencionices do ocultismo contemporâneo. Às vezes o que ele tem a dizer parece ser apenas a manifestação do mau humor de um senhor de outros tempos, mas vale a pena pescar as pérolas de sabedoria nos seus comentários.
Nesta semana, Frater Optimus fala sobre um tema que não é exatamente novo, mas que está em voga: as correlações herméticas entre sistemas e mitologias distintos!
Um amigo que trabalhou muitos anos em navios, tomando conta da manutenção, me contou uma coisa interessante. Talvez você não tenha uma ideia muito clara de como são as peças que fazem um navio funcionar. Eu mesmo não entendo muito, mas uma coisa eu sei: tudo é enorme. Os motores, por exemplo, chegam a ser do tamanho de casas pequenas.
Agora imagine a situação. Você é o responsável pela manutenção de um navio, que está no meio do Oceano Atlântico, a muitos dias de viagem do porto mais próximo, e uma peça importante do motor simplesmente quebra. O que você faz?
É claro que não dá para levar uma peça reserva de cada tipo dentro do navio. Seria quase como levar um navio desmontado dentro do próprio navio. Não faria sentido nenhum. Então como é que se faz? Simples: o navio é grande o suficiente para comportar uma oficina, onde é possível reparar (ou até mesmo fazer do zero) praticamente qualquer peça essencial.
O manual de manutenção do navio traz especificações detalhadas para cada peça. Em tese, bastaria seguir as especificações e trocar a peça. Mas é aí que entra a coisa interessante que meu amigo me contou:
Você pode preparar a peça substituta com todo o cuidado do mundo, seguindo as especificações à risca. Mas na prática, a peça nunca encaixa perfeitamente. E é nessa hora que você precisa da marreta. O que não encaixa por bem acaba encaixando na base da marretada. O importante é não deixar o navio enguiçado em alto mar. E por isso a marreta é a ferramenta mais importante na manutenção do navio.
Mas veja bem. Estamos aqui falando de uma situação muito específica. Nesse cenário, qualquer um com um pouco de bom senso deve concordar que a marreta é extremamente necessária. Mas na minha prática mágica, eu acredito que a marreta é uma violência desnecessária. Explico.
Outro dia desses chegaram para mim com uma tabela enorme, toda colorida. Disseram que era uma tabela de correspondências, como se fosse um Liber 777, só que “mais completa”. Desde a cirurgia de catarata, minha vista até melhorou, mas tive que forçar os olhos para entender o que estava escrito. E acho que preferia não ter visto. Era uma maluquice sem tamanho.
Eu já devia ter desconfiado desde o começo. Para começar, como é que uma tabela (verdade seja dita, ela era grande, do tamanho de um jornal aberto) pode ser “mais completa” do que o Liber 777? Outro detalhe: para que uma tabela tão perfeita e maravilhosa precisaria ser colorida? Eu tenho que confessar: tenho preconceito com coisas coloridas. Acho que coisas que querem se passar por sérias precisam ser em preto e branco; o colorido rouba credibilidade. (Mas reconheço que talvez isso seja só uma coisa minha.) E, finalmente, a fonte: a pessoa que me mostrou disse que “achou na Internet”. E eu ainda estou para ver alguma coisa que preste surgir na Internet.
E a tal tabela tinha de tudo. Era mesmo completa – completa até demais! Tinha cabala, alquimia, astrologia, cores (e quantas cores!), deuses… Até aí tudo bem. Mas tinha também plantas de tudo quanto é lugar do mundo, orixás, santos cristãos, loas do vodu, conceitos emprestados da psicologia, e por aí vai. Tinha tudo que você imaginar, e ainda mais um pouco.
Você pode estar pensando: que legal, onde eu acho essa tabela? Mas o que eu penso é: pra que fizeram isso?
Eu já acho que o próprio Liber 777 é uma boa obra de referência, mas que vai muito além do razoável, e acaba forçando algumas correlações que não têm nada a ver. Correlacionar planetas e metais? Pode ser, por que não? Mas misturar deuses hindus com cartas do Tarô? Não, muito obrigado. E essa tabela leva isso a extremos desnecessários.
Para variar um pouco, a culpa disso não é do Sr. Crowley. Já tinha gente fazendo correlações antes dele. Acho que isso é coisa da condição humana: a necessidade evolucional de reconhecer padrões e aplicar rótulos para manter tudo dentro da zona de conforto. Transformar o desconhecido em familiar sempre parece uma boa ideia.
E é evidente que essa mania de criar correlações surgiu entre os ocidentais, principalmente os com forte base judaico-cristã. E se você vai identificar padrões e rotular tudo que é estranho e desconhecido para adequar a um modelo conhecido e confortável, está claro que a Cabala é um bom ponto de partida. Tudo se encaixa na cabala, não é mesmo? Astrologia, Tarô… Até aí tudo bem. Mas as coisas começam a ficar estranhas na hora que outras mitologias, completamente diferentes, precisam se encaixar também na cabala. Nessas horas começam as aberrações.
As pessoas deveriam entender que a Cabala é um mapa para entender como as coisas funcionam, mas não é, de forma alguma, o único mapa. Outros sistemas (africanos, do extremo oriente, etc.) simplesmente não bebem da mesma fonte da cabala, e nunca vão se enquadrar plenamente nesses moldes. Existem algumas correlações reais e inegáveis? É óbvio que sim. Mas forçar as correlações para que sistemas inteiros se conformem a um molde é uma violência desnecessária, e só serve a um propósito: dar continuidade às intermináveis listas de correlações, tornando tudo mais confortável e palatável, mesmo às custas da falta de conexão com a realidade.
Fazer sistemas mitológicos complexos se encaixarem inteiros em tabelas coloridas de correlações me lembra muito o que o meu amigo fazia nos navios. É martelar uma coisa para fazer caber. Não é bonito, não é o certo, mas é o que se faz para que uma peça se encaixe em um espaço que não é perfeito para ela. Acontece que no navio, a marretada é essencial para o barco continuar seguindo viagem. Na nossa prática mágica, não. Neste caso, a marretada é só uma violência e um desrespeito a outras culturas.
Eu não estou dizendo que você não deve estudar outras culturas. Muito pelo contrário! Eu acho é que o mundo está cheio de culturas incríveis que só têm a colaborar com nossa prática com nosso conhecimento. Também não estou dizendo que não existem correlações entre diferentes sistemas e mitologias. É claro que existem. O que estou dizendo é que é muito forçado tentar dizer que uma mitologia iorubana é 100% compatível com o xintoísmo, por exemplo. Não é! Claro que não é!
Forçar essas equiparações é simplista, desrespeitoso e preguiçoso. O único motivo para dar essas marretadas herméticas é continuar na zona de conforto. E a zona de conforto é exatamente aquilo que o buscador de conhecimento deve evitar!
Então ficam aqui os meus conselhos. Não se limite a uma comparação ou equiparação preguiçosa entre sistemas diferentes; em vez disso, estude a fundo o máximo de sistemas que você conseguir. Faça o possível para sair da zona de conforto, e não para ficar nela. Sempre que você encontrar algum sincretismo suspeito, olhe com carinho, e pense nas marretadas do navio. E, acima de tudo, se alguém chegar para você com uma tabela colorida, e não for a tabela periódica dos elementos químicos… desconfie.
Este texto foi originalmente publicado no site do Magic(k)ando.