Como vimos neste outro texto, as línguas que nós usamos têm um papel importante na forma como percebemos o mundo ao nosso redor. E se a língua tem a capacidade, ainda que não intencional, de alterar nossa realidade (ou percepção da realidade), é claro que é possível usar a língua como ferramenta mágica. Vamos dar uma olhada em algumas formas que magistas usaram, e ainda usam, a língua como ponto crucial em práticas mágicas.
Homem, domai tua Fala!
Aprender uma língua nova não é fácil. Seria pouco realista esperar que alguém devotaria as centenas, ou talvez milhares de horas necessárias para aprender uma língua com desenvoltura, com a única e exclusiva finalidade de usar esse novo idioma em sua prática mágica. Ainda bem que existe uma forma muito mais fácil de usar línguas magicamente: fazer pequenas alterações na língua nativa.
Controlar a forma como se pensa, fala e escreve já é um grande exercício mágico, com potencial de alterar a forma que o magista vê o mundo.
Aleister Crowley, por exemplo, propunha em seu Liber Jugorum um conjunto simples de exercícios linguísticos com finalidades mágicas. O Liber Jugorum sugere três exercícios da fala:
- Eliminar uma palavra comum, como e, a ou mais.
- Eliminar por completo o uso de uma letra.
- Eliminar o uso da primeira pessoa (eu, meu, mim).
Estes exercícios não têm como objetivo apenas fazer com que o magista pense antes de falar. O terceiro exercício, por exemplo, toca em um ponto bem mais profundo: ao eliminar o uso da primeira pessoa, o magista inevitavelmente altera sua percepção do “eu”.
Falando Ao Contrário
Você já deve ter visto em algum filme ou livro a clássica cena do mago (normalmente retratado como maligno) falando ao contrário. De onde vem essa ideia, e para que serve essa prática?
Existem algumas possibilidades. A mais aceita por aqueles que condenam a prática mágica é que, ao falar ao contrário, o magista está negando a normalidade, e se opondo a Deus. Seria, portanto, uma forma de chocar e contrariar. Austin Osman Spare também usava magicamente palavras escritas ao contrário. Para ele, era uma forma simbólica de representar seu exato oposto.
O Dr. John Dee e seu ajudante, Edward Kelley, quando supostamente receberam dos anjos o poderoso idioma Enoquiano, escreveram todas as palavras ao contrário, com medo de que se as escrevessem normalmente, poderiam conjurar acidentalmente inteligências que atrapalhariam seu trabalho.
Aleister Crowley recomendava a seus discípulos que praticassem falar ao contrário, e até mesmo pensar ao contrário. Essa prática é mais difícil do que parece, e estimula a rapidez de raciocínio necessária para fazer a mente trabalhar em estados diferentes da consciência desperta, considerada como normal.
Mas, no fim das contas, falar ao contrário nada mais é do que aplicar uma (grande) transformação a uma língua já conhecida. Mas e quanto a outros idiomas com aplicação mágica?
Línguas Mágicas Naturais e Artificiais
Muita gente usa línguas naturais (línguas faladas por povos inteiros, mesmo que estejam em desuso) para finalidades mágicas. É o caso, por exemplo, do latim, do hebraico, do grego e do sumério. Mas linguagens exclusivamente mágicas não são novidade.
Um exemplo famoso é o Enoquiano, recebido (ou seria inventado?) por John Dee e Edward Kelley. O Enoquiano é uma língua artificial completa, composta de uma gramática e um vocabulário próprios. Alguns dizem que foi transmitida por anjos. Outros, que foi uma invenção elaborada. Seja como for, é uma língua inteiramente diferente de todas as demais, e usada exclusivamente para a magia.
Acessando as Profundezas da Consciência
Mas por que os magistas usam línguas estranhas e pouco familiares, sejam naturais ou recebidas/inventadas, para fazer seus trabalhos mágicos? A resposta é simples. Porque é importante que elas se mantenham estranhas para a consciência desperta.
O simples ato de forçar o cérebro a pensar em uma língua não familiar força a mente a funcionar em estados diferentes do estado desperto, normal, do dia-a-dia. As línguas estranhas são, portanto, uma ferramenta importante para acessar a consciência mágica.
Você fala português todos os dias. Você só fala Enoquiano quando está praticando magia. Dá para perceber o quanto isso é importante?
Além disso, o uso de uma língua pouco familiar e não intuitivamente compreendida faz com que o significado das palavras proferidas não fique na camada mais superficial da mente. Mas a mente subconsciente, que já teve contato com a tradução daquelas palavras, sabe o que elas significam. Lá no fundo, você sabe o que está falando. Mas ao falar nessas línguas estranhas, a mente consciente – que é a maior inimiga do magista – não tem espaço para atrapalhar.
Uraniano Barbárico: Uma Língua Mágica Para o Século XXI
Existem diversas línguas mágicas por aí, cada uma com suas particularidades. Mas o Uraniano Barbárico chama a atenção, por não se tratar de uma coisa morta, estática. Criada por magistas do caos de todo o mundo, seu vocabulário está em constante construção, e novas palavras são descobertas e adicionadas conforme se fazem necessárias. (Você encontra aqui um dicionário atualizado Uraniano/Português/Uraniano.)
Gramática Barbárica
Mas o que faz do Uraniano uma língua realmente única é sua gramática. Além de forçar a mente a operar em estados pouco familiares de consciência, a gramática uraniana barbárica é sutilmente adequada à prática mágica. Entre suas oito simples regras gramaticais, estão:
- Todos os pronomes são plurais (somos seres coloniais).
- Não há formas dos verbos “ser” e “estar” em Barbárico. Todos os conceitos de “ser” ou “estar” desaparecem; só existe o fazer.
Uraniano Barbárico na Prática
É claro que ninguém conversa com ninguém em Uraniano Barbárico. A língua é usada para criar declarações de intenção, invocações, evocações, frases de comando, encantamentos, entre outros. Normalmente, o usuário faz uma pesquisa de antemão para “traduzir” as frases necessárias, e o próprio processo de pesquisa serve para vincular as palavras ao subconsciente.
E durante o processo de tradução, aplicando a gramática simples, a mágica já começa a acontecer. Excluindo a individualidade do “eu” e forçando o “nós”; eliminando o “ser” e forçando o “fazer”, o “transformar”, o Uraniano Barbárico empurra o magista na direção da realização de sua vontade antes mesmo do início da operação mágica.
No próximo texto desta série, que sairá na semana que vem, falaremos sobre o V-Prime (que engloba o E-Prime e o P-Prime) – uma linguagem inventada no meio acadêmico, fácil de aprender, e que mais tarde passou a ser amplamente adotada para finalidades mágicas. Se você não quiser perder esse texto, fique de olho nas nossas redes sociais!
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Línguas Barbáricas e as Profundezas da Consciência