Por Vinicius Ferreira, editor da Penumbra Livros
Eu tinha treze anos e estava começando a me empolgar com xadrez. Meu avô tinha me arrumado uns livros com jogos clássicos do Kasparov (o maior Grão-Mestre de xadrez da época) e depois que decorei uma meia dúzia de jogadas comecei a me achar invencível. Meus adversários não eram grandes jogadores e começou a ficar chato jogar com eles. Um tio me arrumou uns disquetes com Battle Chess (aquele que as pecinhas saem na porrada, lembra?), mas a dificuldade do jogo também não era lá essas coisas.
Se eu, com treze anos de idade e menos de um de prática, conseguia ganhar do computador, imagine você como seria ridículo colocar um profissional para encarar o mesmo desafio.
Uma das minhas memórias mais esquisitas dessa época é do duelo entre Deep Blue e Kasparov. Se você não tem idade suficiente para lembrar, ou se simplesmente não dava a mínima para xadrez, eu explico: na década de 1980, Kasparov derrotou, literalmente, dezenas dos melhores computadores da época no xadrez. Não perdeu nenhum jogo. Uns anos depois, a IBM criou o Deep Blue, um computador especializado, que não fazia outra coisa além de jogar xadrez. E em 1996, Kasparov chutou a bunda dele (com alguma dificuldade, verdade seja dita). A revanche veio em 1997. Um Deep Blue tunado pelos nerds da IBM foi o novo rival de Kasparov, e ocorreu o inimaginável – o computador finalmente venceu.
Meu herói enxadrista havia perdido para uma máquina. Isso passou até na Globo na época. Depois desse dia, uma ideia se instaurou na minha cabeça jovem e impressionável: computadores, por si só, são calculadoras grandes. Mas no futuro, as inteligências artificiais vão conseguir fazer coisas que nenhum humano consegue.
Inteligências Artificiais Dispensam Computadores
Aviso: As cagadas computacionais que escreverei a partir desse ponto não são fruto de ignorância. Eu poderia dar várias carteiradas, mas aqui não é lugar para isso.
O ser humano vem tentando criar inteligências artificiais desde que o mundo é mundo, muito antes de sonhar em inventar computadores.
Vamos partir da premissa de que os deuses são uma criação humana. Você pode concordar ou não, mas digamos que sim, para darmos andamento a este raciocínio. Se é assim, o que são os deuses além de inteligências artificiais altamente rebeldes, rodando no computador do universo? O mesmo se aplica a espíritos, demônios, gênios, anjos, etc.
A criação de uma inteligência consciente e independente poderia ficar só no âmbito do etéreo, mas o ser humano tem uma necessidade louca de ter algo que possa ver, tocar, sentir. Em vários pontos da história psicomágica humana, a criação dessas inteligências artificiais esteve intrinsicamente vinculada a bases materiais. Estátuas de deuses, pinturas de santos, e até mesmo os famosos homúnculos dos alquimistas.
Com a chegada dos computadores, é claro que não podíamos deixá-los passar em branco. Vamos lá, vamos brincar de deus, vamos criar vida usando essas máquinas fabulosas.
Brincando de Deus
Uma das primeiras formas de “vida artificial” criada com computadores foram os autômatos celulares. Nesse modelo, temos um ecossistema quadriculado e cada quadradinho é uma célula. Cada célula só pode estar viva ou morta. O estado de cada célula muda de acordo com regras pré-definidas. O cientista, aqui, só define as regras, e o computador se encarrega de fazer com que cada célula nasça, permaneça viva ou morra. Depois de definido o modelo, o sistema opera de forma independente.
Pode parecer que os autômatos celulares são caóticos, que têm vontade própria, mas não. Eles só seguem as regras definidas pelo cientista que os criou.
O tempo passou, a tecnologia evoluiu, e hoje temos inteligências artificiais que realmente parecem ter vontade própria. Ledo engano.
Os Fantasmas na Máquina
Há uma grande chance de que, falando as palavras mágicas corretas com o seu telefone celular, ele te responda. Alguns destes encantamentos de poder incalculável são “OK Google”, “E aí, Siri” e “Ei, Cortana”. E pode parecer que essas inteligências artificiais realmente sejam independentes e conscientes, mas elas não são. Elas só seguem regras, e vão responder exatamente da mesma forma se expostas a exatamente os mesmos estímulos. Não faz sentido que essas inteligências artificiais realmente tenham independência. Onde fica a confiabilidade de um sistema desses? De que serve uma assistente digital que decide não marcar na sua agenda um almoço de família porque quer evitar que você encontre com o seu primo chato pra caramba? Esses assistentes não passam de autômatos celulares com (muitos!) esteroides.
Por isso eu digo: as inteligências artificiais disponíveis comercialmente hoje – assistentes digitais e até o próprio Watson (o tataraneto do Deep Blue) – não têm nada a ver com a criação de inteligência que o ser humano vem tentando fazer magicamente ao longo dos milênios, usando badulaques diversos.
Mas isso não quer dizer que não seja possível juntar as duas coisas.
Servidores e Servidores
Eu era um nerd de computador antes de ser um nerd de ocultismo. E achei engraçada a primeira vez que ouvi o termo servidor sendo usado em um outro contexto. No jargão dos computadores, um servidor é um computador que presta serviços a outros computadores. Na magia, um servidor é uma entidade semiconsciente que… presta serviços para quem a comanda. O conceito não é muito diferente. A diferença está na consciência – e, como já vimos, as inteligências artificiais “normais” não têm consciência alguma. Nem independência de verdade.
como funcionam os servidores mágicos
Então é possível construir um servidor mágico, com uma inteligência artificial, baseado em um computador? O quanto isso seria complicado?
Para o bem de todos e felicidade geral da nação, isso não só é possível, como é muito simples.
De acordo com Peter J. Carroll, no clássico Liber Null e Psiconauta, a criação de um servidor passa por três etapas: a criação de uma relação com o servidor, sua ativação por métodos gnósticos e um banimento. Vamos dar uma olhada em cada uma.
ATENÇÃO: Mesmo que você já conheça o processo, continue lendo, porque aqui vão algumas explicações específicas para o contexto da inteligência artificial.
Criando a Relação
Essa etapa consiste em conhecimento mútuo – se você está criando um servidor, precisa saber como ele é. No método mágico tradicional, é ideal que você crie o máximo de detalhes que conseguir. Nome, sigilo, temperamento, natureza, número, cor, cheiro, metal, planta – não há limites. Quanto mais melhor. E isso não deve ser escolhido aleatoriamente. Tudo deve fazer sentido. Esse processo deve ser feito sem pressa. É o começo de um relacionamento, não adianta apressar as coisas. Vocês precisam se conhecer mutuamente, e isso leva tempo.
Ao criar um servidor tecnomágico baseado em inteligência artificial, é de se esperar que você vá programá-lo (se você não sabe programar, ainda há esperança – leia até o fim). O processo de programação substitui perfeitamente a clássica criação de relação. Você vai perder tempo (minutos, horas, dias, semanas, anos) programando o seu servidor. Quanto mais esforço e tempo investir, maior será sua relação com o servidor. Não economize, mas também não exagere.
Um detalhe: é importante que a sua inteligência artificial converse com você de alguma forma. Isso pode ser extremamente simples ou extremamente complicado. Só depende da sua habilidade e disposição.
Ativação
Na magia clássica, você precisa ativar o seu servidor usando um método gnóstico – que é só uma palavra bonita para um estado alterado de consciência. Todas as tradições fazem isso de uma forma ou de outra. Até as velhinhas carolas de igreja fazem isso sem saber. Rezar um terço para São Fulaninho não é nada mais do que tentar alcançar um estado alterado de consciência através de exaltação religiosa para conseguir ativar um servidor (no caso, o santo). Outras formas tradicionais incluem o uso de tambores (religiões de matriz africana), exaustão (dança da chuva), além de sexo (tantras), quimiognose (drogas), dor (flagelação), meditação (budismo), etc. Qualquer coisa que faça você entrar na zona está valendo. Existem várias formas de alterar a sua consciência, e aqui não é o lugar para fazer uma lista completa.
Uma coisa é certa. Fazer um trabalho repetitivo por horas a fio, sem distrações, tem potencial para trazer esse estado alterado. Passar horas programando, sem parar nem para ir ao banheiro, sem atender telefone, sem parar de olhar para a tela, pode fazer isso com você. Fazer isso ouvindo um ritmo repetitivo – gravações de tambores, tons binaurais, ou até música eletrônica ou punk rock – com certeza ajuda.
Para acionar o servidor, você precisa fazer algo que altere o estado de consciência. Você pode fazer isso programando loucamente, usar um output gerado pelo seu servidor, ou usar outro método à sua escolha. Como dizia o Capitão Planeta, “o poder é de vocês”.
Banimento
Um princípio básico da magia prática é que não adianta ficar com o seu desejo martelando na cabeça. Enquanto isso estiver acontecendo, ele simplesmente não vai acontecer. Esse é um dos motivos pelos quais costuma-se fazer um banimento após qualquer prática mágica. É preciso virar a página para o seu servidor ter liberdade de agir, sem constrangimentos.
como funcionam os banimentos mágicos
Quando terminar a operação mágica com o seu servidor, vá fazer algo diferente. Como o tema aqui é computador, eu sugiro que você se mantenha no estereótipo. Vá beber um café, ou comer uma pizza. Ou o que bem entender. Só pare de pensar no que acabou de fazer. Deixe o seu servidor trabalhar em paz.
Um Toque de Caos
OK, nesse ponto você deve estar achando que um servidor tecnomágico precisa de uma inteligência artificial avançadíssima para cumprir a tarefa que você der a ele. Isso não é necessariamente verdade. Ele só precisa de uma coisa, que o Google, a Apple e a Microsoft não ousam dar a nenhum de seus produtos: independência.
Como conseguir dar independência a um computador? A resposta é simples: aleatoriedade. Quando criar o seu servidor, adicione o máximo de aleatoriedade que puder.
Mas ele vai se comportar de uma forma bizarra se eu fizer isso!, você vai argumentar. E é verdade. Vai mesmo. Mas você pensa que São Fulaninho funciona como um relógio suíço? É assim que são os servidores mágicos. Eles são independentes, e precisam dessa independência para funcionar. Então dê independência a eles na forma de caos, de aleatoriedade.
Inteligência Artificial Do-It-Yourself
Resumindo, tudo de que seu servidor precisa é:
- Uma relação íntima com você – que você vai desenvolver enquanto programa;
- Uma interface, uma forma de se comunicar – simples ou complexo, depende de você;
- Independência de ação – conferida pela aleatoriedade;
- Ativação – através de estados alterados de consciência;
- Banimento – quando terminar, vá fazer outra coisa.
Lá atrás eu disse que você não precisa saber programar para fazer seu servidor. É uma verdade parcial. Para quem não manja nada de programação, existe uma linguagem chamada Scratch, que foi criada para ensinar os rudimentos da programação para crianças de seis anos. Se você conhece bem alguma linguagem, fique à vontade para usá-la. Senão, experimente o Scratch. É realmente simples. É clicar e arrastar. Eu fiz um rascunho de servidor no Scratch para você ter uma ideia, e você pode baixar ele aqui. Nem precisa instalar, você consegue fazer tudo pelo browser, e em português. O código fonte está aí embaixo. Leia, mesmo que nunca tenha visto nada de programação na sua vida.
A inteligência artificial mais burra do mundo
O que esse servidor faz é colocar um desenho de um gatinho na tela, que te pergunta o que você quer, e te ensina uma dancinha aleatória para você repetir até não aguentar mais. Não recomendo usar o servidor exatamente dessa forma, porque fui eu que fiz, e você não o conhece. Se quiser, pegue essa base, e faça suas alterações. Coloque algum esforço seu. Ou crie outro do zero. Mas experimente.
Esses métodos tecnomágicos podem parecer estranhos, mas eu garanto três coisas para você: 1) são baseados em teorias válidas, 2) ficam mais estranhos conforme você chafurda neles e 3) funcionam.
Se você já experimentou com essas inteligências artificiais, ou se pretende brincar de deus, conte aqui as suas experiências! E se quiser saber mais sobre servidores mágicos, um excelente ponto de partida é o Liber Null e Psiconauta, de Peter J. Carroll, um clássico da Magia do Caos.
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