Era só o que me faltava. Outro dia desses vieram me contar que tem gente por aí fazendo Goetia sem triângulo e sem círculo. As pessoas vão experimentar uma prática séria, perigosa, e resolvem tirar os principais mecanismos de segurança, só porque sim. O que essa gente tem na cabeça?
Vou dar um exemplo bem idiota para essa gente burra entender. (Sim, é com você que eu estou falando.)
Bicicleta. Andar de bicicleta não é uma coisa que você aprende de uma hora para outra. Você começa com aquelas rodinhas. Depois você tira as rodinhas. Toma uns tombos, mas não é nada extraordinário. Depois de muito andar na sua bicicletinha, sem inventar moda, você faz uma experiência. Numa reta, sem movimento, sem trânsito, sem pedestres, sem buracos, você experimenta tirar as mãos do guidom. Só por alguns instantes. Se cair, você levanta e tenta de novo. Se der certo, você tenta complicar mais um pouco.
Chega uma hora que você se sente confiante para fazer manobras mais arriscadas. Vai cair algumas vezes, isso é certo. Certo e esperado. Você provavelmente vai estar usando o kit palhaço completo – joelheira, cotoveleira, todas as eiras. Quando cair, não vai se machucar demais. E se continuar se dedicando, vai conseguir fazer manobras que o ciclista médio não consegue. Parabéns para você. Você dominou a técnica, e não morreu no processo.
Agora vamos voltar para as pessoas que fazem Goetia sem círculo e sem triângulo.
Goetia não é a forma mais tranquila de fazer magia. É um método de chamar demônios ancestrais – ou, dependendo do seu ponto de vista, partes bem esquisitas do seu subconsciente – para realizar seus desejos. A colaboração nem sempre é facilmente conquistada. É relativamente comum precisar ameaçar e torturar o demônio. O que não parece uma coisa muito sábia a se fazer.
A coisa toda é um tanto complexa, e não cabe descrever a Goetia inteira aqui. De qualquer forma, não é a mesma coisa que acender vela para anjinhos, ou deixar uma maçã para uma fadinha. Você pode se dar mal de verdade praticando Goetia – seja com um demônio poderoso grudando no seu pé, seja dando abertura demais para uma parte do seu subconsciente que estava no cantinho dela, sem perturbar ninguém.
E é por isso que, ao longo dos séculos, vários magos desenvolveram uma série de mecanismos de proteção. O ritual completo da Goetia é bastante complexo, e envolve umas parafernálias bem metidas a besta. Alguns dos paramentos são realmente complicados de se encontrar – o exemplo clássico é o cinto de pele de leão. Mas algumas coisas são realmente simples.
O triângulo, por exemplo, é um cantinho reservado para a manifestação do demônio. Ele, em teoria, se manifesta ali, e dali não sai. O triângulo tem um milhão de simbolismos que fazem ele funcionar como uma forma de confinamento.
Se alguma coisa der errado, ainda tem o círculo. O círculo fica em volta do magista (ou o magista fica dentro do círculo). Ele age como uma barreira de proteção caso alguma coisa dê errado. Dentro do círculo, o magista está relativamente seguro.
Aleister Crowley tinha o péssimo hábito de deturpar tudo quanto era ritual que caía no colo dele. Com a Goetia não foi diferente. Na versão dele do ritual, ele tirou boa parte das coisas que considerava inúteis. O cinto de leão, por exemplo. Os milhões de nomes de Deus. E várias outras coisas. Mas ele deixou o que considerava o mínimo necessário – o triângulo e o círculo. Porque ele podia ser metido a malandro, mas não era idiota.
Agora me aparecem esses moleques aí, muito novos, ainda fedendo a leite, achando que é fácil tirar essas coisas bobas. O que será que essa gente tem na cabeça?
Triângulo? Círculo? Não preciso disso, não. Eu sou o fodão. Não preciso de nada disso. Vai ficar tudo bem. Não vai dar nada de errado. O demônio não vai fazer nada comigo, não. Se fizer, também, eu me viro. Se eu já fiz do jeito tradicional antes? Não, não precisa não. Vai dar tudo certo. Vai sim. Esse método aí é coisa do passado. Hoje em dia não precisa mais disso, não. Vai ficar tudo bem. O que pode dar errado?
É, meu caro. Eu poderia fazer uma pequena listinha do que poderia dar errado. Mas quero mais é que dê errado para você. Na verdade, eu nem preciso desejar o seu mal. Parece que você mesmo está fazendo isso de forma excelente.
Querer tirar o triângulo e o círculo da Goetia sem antes experimentar o jeito tradicional é exatamente – repito: exatamente – a mesma coisa que querer fazer manobras “radicais” de bicicleta antes de aprender a andar com as rodinhas. Tudo isso, é claro, sem capacete, sem joelheira, sem cotoveleira, sem nenhuma eira. Só asneira.
Vamos deixar uma coisa clara: não estou aqui falando só da Goetia sem triângulo e sem círculo. Estou usando esse exemplo específico, extremo e ridículo (embora real!), mas existem inúmeras outras formas de falhar miseravelmente com a magia. E acredite: se você está seguindo por esse caminho, você está só esperando o fracasso. Porque estamos tratando de um fracasso anunciado. Você vai cair. As coisas vão dar errado. É só uma questão de tempo.
Se você já pratica Goetia há anos, sabe exatamente o que está fazendo, já fez pequenas alterações no ritual para adequar às suas necessidades, e depois de muito estudo e experiência descobriu que é possível, sim, tirar o triângulo e o círculo, e o raio que o parta, eu te digo: parabéns. De verdade, sem ironia. Você está inovando, mas de forma embasada, e conhecendo os riscos que está correndo. Se algo der errado, você provavelmente saberá lidar. É assim que a Arte evolui.
Mas se você acha que é só chegar fazendo as coisas do jeito mais difícil e perigoso, e que tudo vai dar certo… Nesse caso, eu te dou todo o apoio. Só me faça o favor de fazer isso enquanto ainda for bem jovem, antes de ter filhos, para não deixar descendentes. Só assim mesmo para o Darwinismo ter espaço de manobra para funcionar hoje em dia.
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