É bastante razoável que alguém que não esteja diretamente envolvido nesse meio tenha várias dúvidas sobre a moralidade da bruxaria. A própria cultura pop não ajuda: às vezes a bruxa é retratada como a encarnação do mal – uma velha horrenda, com verruga na ponta do nariz e um mau hábito de comer criancinhas. Às vezes, como uma jovenzinha bonitinha e cheia de bondade no coração, mas que por acaso decidiu montar um guarda-roupas gótico. Mas onde estão as bruxas… normais? Gente como a gente, que tem momentos de bondade e de maldade? Vamos tentar descobrir.
Eternos Antagonistas
A história está cheia de exemplos de bruxaria sendo perseguida como algo intrinsicamente maligno. Isso não está restrito à idade média, como muita gente pensa. Não. Isso acontece até hoje. Basta acompanhar, por exemplo, o caso esdrúxulo da Casa do Mago, famoso centro espírita no Rio de Janeiro, que recentemente sofreu três tentativas de incêndio em menos de um mês.
Na maioria das vezes essas acusações são completamente infundadas. Acusar uma pessoa ou grupo de pessoas de bruxaria, pressupondo ainda por cima que isso é uma coisa ruim e passível de punição, é uma forma fácil de transformar o seu inimigo no inimigo da sociedade. Via de regra, bruxaria é sempre a obra do outro. Nunca minha, nunca nossa.
Por toda a história registrada a bruxaria tem sido malefica, venefica, incesto e assassinato. A aldeia ao lado, a cidade ao lado, o país ao lado, a velha, a jovem, o Judeu, o leproso, o Cátaro, o Templário, o Ofita, o Bogomilo. Eles fazem isso. Não nós, você entende, mas eles. Você encontrará a bruxa no final de um dedo apontado.
Peter Grey – Bruxaria Apocalíptica, p. 14
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Malefica e Venefica
Da idade média até o século XVIII, não se usava a palavra bruxa. A pessoa acusada de praticar bruxaria era normalmente chamada de malefica ou venefica. É da expressão malefica, por exemplo, que se origina o nome do infame manual de caça às bruxas, o Malleus Maleficarum.
Malefica
A ideia por trás dessas expressões é simples. Malefica era uma pessoa que fazia o mal. No pensamento dos seus oponentes, portanto, era a bruxa que usava seus poderes para o mal. O que é bastante natural, considerando as acusações que as cercavam: destruir plantações, acabar com a saúde do gado, matar crianças. Tudo que acontecia de ruim era considerado culpa das bruxas. E, portanto, não era possível que elas fossem boas pessoas.
Venefica
Venefica, por outro lado, pode ser traduzido como envenenadora. A origem desse conceito tem a ver com a capacidade das “bruxas” de usarem a medicina natural. Em uma cultura em que a medicina era quase inexistente, remédios naturais – chás, pomadas, emplastros – eram em muitos casos os melhores tratamentos. E quem sabia preparar, receitar e aplicar esses remédios eram as mulheres sábias.
Os remédios de hoje em dia, dependendo da dosagem, podem ser letais. Um exemplo disso é o perigosíssimo paracetamol, vendido sem receita em qualquer farmácia brasileira. E não era diferente com os remédios naturais preparados pelas curandeiras. Então, aqui há uma ponta de verdade: as curandeiras de outrora sabiam, sim, preparar venenos. Mas não significa que fossem a causa de todos os males do mundo. Assim como os farmacêuticos de hoje não são todos serial killers.
Contra a Corrente
Já está claro que muitas das acusações de bruxaria se davam contra pessoas inocentes. Mas não custa ressaltar o motivo pelo qual essas pessoas eram escolhidas como alvos do ódio da sociedade.
Nicholaj de Mattos Frisvold, em A Arte dos Indomados, nos dá um dos motivos:
Vendo a forma que o termo foi utilizado na Idade Média, o desacordo com a norma social poderia ser o suficiente para a acusação de malefica.
Nicholaj de Mattos Frisvold – A Arte dos Indomados, p. 120
O simples fato de resistir, de não se enquadrar, de não estar em conformidade com o senso comum, com o status quo, era mais do que suficiente para decretar a sentença de morte de muita gente, sob acusações de bruxaria.
Hoje em dia ainda há intolerância, em todas as frentes, mas não se enquadrar no Sistema podia ser ainda mais perigoso alguns séculos atrás.
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A Bruxa Arquetípica
Foi, então, dessa visão preconceituosa de malefica e venefica que se formou a imagem clássica da bruxa malvada.
A idade avançada vem da associação que se faziam com as mulheres sábias – normalmente as mais habilidosas curandeiras tinham muitos anos de experiência, e já não eram jovenzinhas em sua melhor forma física. A aparência feia vem da associação que se faz, desde sempre, entre feiura e maldade. O chapéu pontudo clássico da bruxa é uma herança dos chapéus que os Judeus usavam na Europa medieval. (Os Judeus eram frequentemente acusados das coisas mais variadas pelo establishment cristão.)
Essa é a base da bruxa da Disney. A cultura pop durante muitos anos só reforçou o estereótipo da bruxa malvada, inclusive dando a ela uma aparência típica.
O Surgimento das Bruxas Boazinhas
Por incrível que pareça, mesmo não havendo mais queimas de bruxas em praça pública há alguns séculos, a bruxaria só deixou de ser ilegal na Inglaterra em 1951. Como é público e notório, a Inglaterra é uma fonte inesgotável de revoluções na história da magia. E, depois do fim da proibição, seria uma questão de tempo até a bruxaria se reestabelecer no Reino Unido, sob uma nova roupagem, pronta para o Século XX.
Esse movimento de renascimento pagão – conhecido como neopaganismo – começou a surgir ainda nos anos 50, mas ganhou mais força nos anos 60 e 70. E uma série de fatores colaborou para que essa nova bruxaria fosse um pouco menos escancarada e realista. Sem entrar em detalhes sobre cada um destes itens, vai aqui uma pequena lista:
- A sombra de séculos e mais séculos de proibição desta prática;
- O recente fim da segunda guerra mundial, que arrasou o país;
- Um crescimento dos movimentos pacifista, feminista, hippie, flower power, etc.
Como resultado disso, esse neopaganismo se instaurou como uma religião “do bem”. Uma das principais regras da Wicca, a manifestação neopagã desenvolvida por Gerald Gardner, é a Lei Tríplice, que afirma que toda energia gerada por uma pessoa retornará a três vezes ela.
A Lei Tríplice e o Cristianismo
A consequência da Lei Tríplice é óbvia: se você fizer o bem a alguém, receberá muitas coisas boas em troca. Se fizer o mal, muitas coisas ruins acontecerão com você. Então está claro que o mal não compensa. Porque quem faz o mal se dá mal no final.
O resultado indireto disso é um só: controle da moralidade através do medo. Por mais irônico que pareça, isso implica que algumas vertentes do neopaganismo têm exatamente a mesma moralidade do cristianismo, uma doutrina que por tantos séculos se opôs ao paganismo popular.
Mas no fim das contas, o resultado é o mesmo. Se uma bruxa fizer o bem, ela “vai para o céu”. Se fizer o mal, “vai para o inferno”. Mudam os ritos, muda a roupagem, mas a moralidade é exatamente a mesma do cristianismo. O motivo para ser bom é ser recomensado por isso. O motivo para não ser mal é evitar ser punido.
E, da mesma forma que a velha horrenda e maligna se tornou a imagem clássica da bruxa do começo do século passado, a bruxa jovem (potencialmente bonita) e boazinha virou o arquétipo da bruxa da nova geração.
O que não quer dizer que todo praticante de bruxaria – hoje ou em qualquer época – precise se enquadrar nestes estereótipos.
Nem Oito Nem Oitenta
A moralidade da bruxaria não é preta nem branca, e sim espalhada em um milhão de tons e subtons de todas as cores que você consiga imaginar. Qualquer indicação em contrário é, certamente, preconceito e simplismo desnecessário. A bruxa de verdade trata tanto da vida quanto da morte, tanto da cura quanto do veneno. Não existe polarização na vida real. Só nos contos de fadas.
Duas das obras mais importantes sobre a bruxaria mostram como essa arte pode ir muito além da forma polarizada que a mídia tenta nos vender. A Arte dos Indomados mostra como a Arte Tradicional não é essa coisa desinfetada que muita gente hoje em dia enxerga como bruxaria. A Arte tem diabo, sangue, bem e mal. Bruxaria Apocalíptica apresenta uma visão de como praticantes atuais de bruxaria podem – e devem – se opor ao status quo social e religioso da atualidade, praticando essa arte ancestral de uma forma adequada aos dias de hoje (e não aos anos 50).
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