Estragaram Deuses Americanos?

Estragaram Deuses Americanos?

Por Vinicius Ferreira, Editor da Penumbra Livros

Gosto tanto do livro Stardust que nunca assisti o filme. Tenho medo de me decepcionar. Criar expectativas sobre adaptações cinematográficas ou televisivas normalmente não é uma boa ideia.

Deuses Americanos tem lugar cativo no meu Top 10 livros de todos os tempos. A lista está mudando o tempo todo, mas Deuses Americanos está sempre lá, marcando presença. O motivo é simples: eu já tinha criado uma mitologia própria, na qual o nosso mundo funcionava mais ou menos daquele jeito, quando li o livro. E descobri que alguém – por acaso, ninguém menos do que Neil Gaiman – compartilhava da minha visão. Mesmo que para ele (e para o resto do mundo) seja só uma história, aquilo foi importante para mim. Além, é claro, da relação emocional, trata-se de uma história muito boa e muito bem contada.

Quando anunciaram que ia sair uma série de TV, eu tive uma reação meio esquisita. Não sabia se deveria me empolgar ou não. Se seria ou não um novo Stardust. Pensei com meus botões – se a série sair pelo Netflix ou HBO, tem chances de dar certo. Se sair pelo SyFy, como é o caso de The Magicians, não tem.

Acabou saindo pela Starz/Amazon. Eu confesso que não sei nada sobre nenhum dos dois, e por isso dei à produção o benefício da dúvida. Mas aí veio o trailer de Deuses Americanos. E eu me empolguei. E o benefício da dúvida virou expectativa. E agora eu assisti a série, e não me arrependi.

Daqui em diante, evitarei spoilers, mas pode ser que você leia mais do que gostaria. Continue por sua conta e risco.

Adaptação fiel?

O primeiro episódio da série equivale aos dois primeiros capítulos do livro. Mas logo na primeira sequência, eu pensei que a série não teria nada a ver com o livro. O livro começa com Shadow na prisão, e aquele comecinho da série simplesmente não existe no livro.

Consigo entender por que fizeram aquilo. Tudo ia ficar muito jogado se não fizessem daquela forma. Achei particularmente interessante terem colocado o Sr. Íbis como narrador. Faz todo o sentido ele ser o contador de histórias, e estar escrevendo tudo aquilo.

O resto do episódio segue mais ou menos a sequência do livro. É claro que alguns diálogos mudam. Cenas como a do cemitério, com a Audrey, permaneceram iguais em sua essência, embora detalhes tenham mudado. Mas para meu espanto, eles não pegaram leve com a cena da Bilquis.

Momento Almodóvar

Ainda bem que não tentaram amenizar a (única) cena da Bilquis. Só não sei se concordo com uma pequena adaptação. Bilquis conhece aquele cara pelo Tinder. No livro, ela é uma prostituta. Está claro – a cena toda é uma ode ao empoderamento feminino, e mostrar aquela mulher poderosíssima se prostituindo poderia ir um tanto na contramão da ideia toda.

A minha crítica tem a ver apenas com o simbolismo que se perdeu. A Bilquis do livro faz questão de receber seus cinquenta dólares pelo serviço, e não escolhe o parceiro com critério. O que Bilquis faz no livro é uma prática conhecida como prostituição sagrada, ou prostituição religiosa. Pode parecer horrível aos nossos olhos, mas era comum nos cultos de Inanna, Ishtar, Afrodite, e até mesmo em tradições completamente distintas, como a Asteca e a Xintoísta.

De qualquer forma, a Bilquis da série é uma força da natureza, e pode fazer sentido que ela não se prostitua, e sim escolha seus homens no Tinder. Veremos com o andamento da série. Parece que essa personagem terá uma importância maior nas telas do que nas páginas.

E, de qualquer forma, a sequência almodovariana foi impecável. Ah, as maravilhas da TV por assinatura. Fico imaginando como ficaria horrível se uma Globo da vida tentasse replicar a proeza.

O mundo mudou

Fora a sequência de abertura, a maior diferença do livro para esse primeiro episódio foi a cena final. Ela mostra um dos novos deuses, numa versão atualizada. O livro foi escrito em 2001, a série é de 2017. É claro que não faria sentido se um “novo” deus fosse uma caricatura do zeitgeist de dezesseis anos atrás.

O gordinho de roupas escuras, fumando seus cigarros enrolados à mão, numa limusine forrada de couro deu lugar a um magrinho de roupas claras, fumando um vaporizador (com aditivos) num carro high-tech, com capangas high-tech. OK. Eu aceito essa mudança sem reclamar.

Mentira. Não gostei dos capangas.

Sanguinolência

A primeira e a última cena mostram uma sanguinolência que não está no livro. Tudo bem, eu entendo. Vikings guerreiam, e guerra nunca é uma coisa bonita. Minions high-tech sem rosto podem morrer na tela sem nenhum sentimento de compaixão. Eu entendo. Mas os banhos de sangue dessas duas cenas foram um tanto exagerados.

Corta para uma luta de bar bastante realista e pé no chão. Padrão Bourne de porradaria. O que me incomodou não foi o excesso de sangue nessas duas cenas – foi a falta de consistência. Qual vai ser a estética da série? Sangue espirrando para todo lado ou porradaria estilo UFC?

Essas cenas mais sangrentas, na verdade, me lembraram bastante os filmes japoneses de samurai. Não sei se foi essa a inspiração. Só espero que seja uma escolha justificada – talvez seja um preparativo para quando Czernobog aparecer? Espero que sim. Espero que não seja sem motivo.

Sem whitewashing

A moda da semana passada era falar mal do whitewashing do filme do Ghost in the Shell – se você não sabe, colocaram a Scarlett Johansson para fazer uma personagem chamada Motoko Kusanagi. Deuses Americanos não cai nessa armadilha. A maioria dos personagens até agora não deixa muita margem para interpretação. Seria esquisito colocar um leprechaum que não fosse ruivo, por exemplo. Mas nem todas as escolhas foram fáceis.

Acho que acertaram muito a mão com a escolha do ator que interpreta Shadow Moon. O livro não o descreve muito bem, mas dá algumas pistas. Primeiro, ele é grande. Segundo, ele não é branquelo. Um personagem pergunta se ele é cigano, e ele diz que acha que não. Pergunta se ele tem sangue negro, e ele diz que pode ser. Eu ia ficar incomodado se botassem um loirinho para fazer esse papel. Acertaram na mosca. Não conhecia o ator (o inglês Ricky Whittle), mas ele até agora me convenceu.

Em segundo lugar, acertaram a mão com a Bilquis. A origem da personagem vem da Rainha de Sabá, e até os próprios etíopes às vezes a representavam como uma mulher não-negra. Seria muito conveniente e muito típico da TV americana colocar uma mulata clara. Em vez disso, colocaram Yetide Badaki, uma nigeriana que só se naturalizou norte-americana há três anos, e que arrebenta na sua interpretação.

Rainha de Sabá

Afresco etíope da Rainha de Sabá

Por que uma série?

A coisa que mais me preocupa nessa adaptação é o fato de ser uma série. De TV. Séries de TV têm uma tendência desagradável de se estenderem demais, mesmo depois da história ter se esgotado.

Eu acho que fazer um filme de Deuses Americanos seria um tanto criminoso – a história é rica demais para ser condensada em duas ou três horas. Mas talvez uma série seja demais. A um ritmo de dois capítulos por episódio, bastariam dez episódios para contar toda a história. Eu francamente não consigo imaginar como a trama vai se sustentar por duas, três, quatro temporadas.

 

Espero, de verdade, que o Neil Gaiman continue envolvido na produção, para evitar que esse universo que eu tanto admiro e respeito seja violado pelos deuses da televisão. Se a série continuar seguindo essa linha, estamos bem. Por enquanto, o Amazon Prime Video ganhou mais um assinante. Mas espero, francamente, que Deuses Americanos não se torne mais uma série genérica e esquecível, como velhos deuses abandonados por seus adoradores.

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