Uma Abadia de Thelema na Itália de Mussolini

Uma Abadia de Thelema na Itália de Mussolini

Décadas antes do movimento hippie surgir, Aleister Crowley fundou sua Abadia de Thelema, uma comunidade alternativa onde todos poderiam viver a Lei de Thelema vinte e quatro horas por dia. Por alguns anos ele conseguiu exatamente o que queria. Esse foi, inclusive, um dos períodos mais felizes e prolíficos de sua vida. Mas se esqueceu de que estava fazendo tudo isso no quintal de Mussolini – um governante que não era exatamente conhecido por seu liberalismo.

Uma Comunidade Ideal

Crowley via a separação geográfica e as obrigações da vida cotidiana como empecilhos na busca da obra da magia (embora também achasse que esses obstáculos fossem contornáveis, como demonstrado em João São João). Esse foi o principal motivo pelo qual decidiu fundar a Abadia de Thelema.

Na obra de François Rabelais (sob o pseudônimo Alcofribas Nasier) Crowley encontrou a inspiração para criar sua comunidade ideal. Ele se impressionou com a precisão que o autor previu sinais do Novo Aeon em sua obra, datada de 1542. Em Gargântua e Pantagruel, Rabelais descreve uma “Abbaye de Thélème”, cujos habitantes viviam suas vidas “não de acordo com leis, estatutos ou regras, mas de acordo com sua vontade e com seu prazer”. Mais thelêmico impossível.

Crowley então tratou de encontrar um imóvel adequado aos seus propósitos, e cujo aluguel pudesse pagar. O local escolhido foi a cidadezinha siciliana de Cefalù, na Itália. Crowley se mudou para lá em 1920. Lhe acompanharam sua mulher escarlate da época, Leah Hirsig (com sua filha recém-nascida, Anne), e uma amante, Ninette Shumway.

Logo outros Thelemitas, famosos e anônimos, ricos e pobres, começaram a aparecer para viver na comunidade. O que faltava era prontamente adquirido em visitas às cidades próximas – inclusive drogas. Os habitantes praticavam seus ritos diariamente, com total liberdade, sem outras preocupações. Tinham tempo livre para fazer o que quisessem. Tudo estava indo bem. O que poderia dar errado?

Ladeira Abaixo

No mesmo ano em que foi fundada a Abadia de Thelema em Cefalù, as coisas já começaram a dar errado. O primeiro indício claro de que as coisas não estavam indo tão bem assim foi a morte de Anne – a filha recém-nascida de Leah Hirsig.

Crowley era o “gerente do estabelecimento”, por assim dizer. E nessa época, estava no auge de seu vício em heroína. Imagine, agora, como deveria ser higiênico um lugar sem saneamento básico, habitado por pessoas que evitavam qualquer espécie de responsabilidade, lideradas por alguém com sérios problemas com a heroína. E, de fato, a falta de higiene foi a ruína da Abadia de Thelema.

O local, cercado por mata, começou a ser frequentado por animais, que sujavam o ambiente e traziam consigo todo tipo de doença. Alguns ritos celebrados na Abadia envolviam sacrifício animal, e até mesmo o consumo de seu sangue (como ingrediente para os famigerados bolos de luz). Há relatos de que um dos Thelemitas teria se envolvido em intercurso sexual com uma cabra, representando Pã.

Com essas condições adversas, pessoas logo começaram a ficar doentes. Nem todas as fontes de água do local eram próprias para o consumo. Raoul Loveday, um dos Thelemitas que lá havia se estabelecido, bebeu da água impura de um córrego e ficou gravemente doente. Acabou falecendo, em 1923, de febre tifoide. Sua morte foi o começo do fim.

Logo o governo de Mussolini ficou sabendo do que ocorria debaixo de seus bigodes. Crowley foi prontamente deportado. A comunidade logo se dissolveu. O sonho acabou.

O Lado Bom

Pode parecer que a Abadia de Thelema foi apenas um lugar sem lei, uma zona autônoma temporária onde todos podiam fazer de tudo. Era isso – mas não só isso. Os breves anos de existência da Abadia em Cefalù trouxeram grandes frutos.

A colaboração entre os Thelemitas e a prática diária de mágicka possibilitou, em um curto período de tempo, o desenvolvimento de técnicas que poderiam demorar anos para serem criadas nas condições convencionais. O tempo livre para arte, estudos e escritos gerou frutos interessantes também.

Nos anos da Abadia de Thelema, Crowley levou seu sistema de Mágicka Sexual a outro patamar. Foi nessa época que concluiu a terceira parte do Livro Quatro – também conhecida como Magia em Teoria e Prática. Também escreveu o Comentário Longo sobre O Livro da Lei, e produziu o Ritual da Marca da Besta. Foi também em Cefalù que Crowley, auxiliado por sua Mulher Escarlate, Leah Hirsig, alcançou o 10º grau da A.·.A.·. – em um processo cerimonial bastante… curioso.

Acima de tudo, a maioria dos habitantes do complexo relatava ter vivido uma época de felicidade na Abadia de Thelema. Foi, certamente, um período em que fizeram o que quiseram.

A Abadia de Thelema Hoje

Por incrível que pareça, a Abadia permanece de pé até os dias de hoje. Estava à venda entre 2010 e 2011, mas não está mais sendo anunciada.

Após Crowley ter sido enxotado por Mussolini e os outros Thelemitas terem debandado, a casa não foi mais ocupada. As paredes internas da casa estavam todas pintadas com motivos Thelêmicos. Os habitantes dos arredores, escandalizados ao saberem o que se passava por lá, prontamente caiaram a casa, cobrindo todas as pinturas. O lugar permaneceu no mais completo abandono até 1955.

Nesse ano, o cineasta Kenneth Anger (não confundir com Kenneth Grant), também um seguidor de Crowley, decidiu restaurar o cômodo principal da casa – a Câmara dos Pesadelos. Ele teve sucesso em recuperar algumas das pinturas originais, e filmou um documentário sobre o local. Infelizmente o filme se perdeu e não está mais disponível hoje.

Depois de Kenneth Anger, a casa não foi mais ocupada, mas está de pé. O teto está desmoronando, e a polícia local não gosta que ninguém entre porque há risco de desabamento. Mas algumas pessoas ainda entram ilegalmente, celebram seus rituais, fazem novos desenhos nas paredes. E tiram fotos. Aqui temos algumas imagens recentes do fotógrafo Per-Erik Skramstad.

E se a Abadia de Thelema tivesse dado certo?

Mesmo com histórias escabrosas de práticas mágicas altamente questionáveis, problemas sérios com drogas, falta de saneamento, culminando até mesmo em mortes, é questionável que a Abadia de Thelema tenha sido um fracasso completo. Muitas técnicas foram desenvolvidas nesse período, muitos textos relevantes foram produzidos, muitas relações interpessoais importantes estabelecidas.

Mas está claro que o sucesso poderia ter sido muito mais expressivo.

Se o Experimento de Cefalù tivesse obtido sucesso Exteriormente, nós poderíamos a essa altura contar com um poderoso núcleo Thelêmico capaz de transmitir a Corrente para nós, seus herdeiros e sucessores.

 

Kenneth Grant, Aleister Crowley e o Deus Oculto, p. 94

Mesmo se as coisas não fossem tão estranhas quanto foram na Abadia de Thelema, é muito provável que o regime de Mussolini mais cedo ou mais tarde descobrisse o que acontecia naquela comunidade alternativa na idílica Cefalù. E ninguém é capaz de dizer o que aconteceria nesse momento.

Em Aleister Crowley e o Deus Oculto, Kenneth Grant apresenta algumas das descobertas de Crowley nesse período, com base em seus diários e em correspondências trocadas com pessoas que viveram com ele durante aqueles anos.

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