Por Vinicius Ferreira, Editor da Penumbra Livros
Eu era um moleque impressionável quando assisti A Lenda pela primeira vez. O filme é de 1985. Nessa época os efeitos especiais eram feitos sem computador, e o Ridley Scott ainda não tinha perdido a mão. Mas de todas as coisas visualmente impressionantes que esse filme traz, o que mais me marcou foram os chifres do diabo (tecnicamente, não é exatamente o diabo, mas tente explicar isso para um moleque…). Ninguém precisou me dizer que aquele cara era o mal encarnado. Os chifres deixavam essa mensagem bem clara.
É isso que símbolos enraizados na nossa cultura fazem conosco. Mas os chifres nem sempre foram associados ao mal.
Deuses Chifrudos no Primeiro Aeon
A associação dos chifres com um poder superior vem de tempos imemoriais. De acordo com a separação de aeons definida por Peter J. Carroll, em Liber Null e Psiconauta, o conceito de um espírito que anima todas as coisas foi identificado logo no primeiro aeon. Por meio das práticas xamânicas, era possível identificar que esse espírito mundial – esse Deus – tinha a imagem de um homem com chifres.
Os chifres representavam o poder que exercia sobre os animais. O fato de ser um homem tinha relação com o potencial escondido no homem, que pode ser desperto através de dedicação e treinamento. E já naquela época se identificava a natureza dual dos chifres:
Os chifres duplos simbolizam a natureza bipolar de uma força que era ao mesmo tempo boa e má, clara e escura, bela e terrível. Além disso, a imagem do Deus Cornudo dá uma impressão da incrível e temível natureza desse tipo de poder.
Peter J. Carroll, no capítulo Perspectivas Mágicas do Psiconauta
Origens Linguísticas
Existe uma lógica linguística que correlaciona alguns termos relacionados aos chifres – muitos deles se originam da mesma raiz: KRN. Entre essas expressões estão Cernunnos (o deus cornudo dos celtas), Karneios (Apolo Karneios, deus chifrudo dos dórios) e Kronus (o deus saturnino dos gregos), além de Corona (a coroa), Cornus (chifre), e Keraunos (relâmpago).
Pode parecer que não há muita relação entre os termos, mas as imagens não mentem.
Ué, mas onde estão os chifres de Kronos? A resposta é simples: ele não tem chifres, mas está invariavelmente acompanhado de seu ancinho. É o símbolo saturnino da colheita, da finitude das coisas. Mas é válido lembrar que existem outros símbolos para isso – como a clássica ampulheta – mas o ancinho ou foice tem exatamente a forma de meia-lua associada aos chifres.
E falando em meia-lua…
Símbolos Lunares
Como já vimos, os xamãs da mais remota antiguidade já haviam percebido que os chifres representavam dualidade. O conceito de que chifres são uma coisa simplesmente maligna (lunar) é muito mais recente, e se origina, em grande parte, da Igreja Católica. Sempre foi estratégia dos cultos monoteístas transformar os deuses antigos em coisas horríveis.
Mas, como aponta Nicholaj Frisvold, em A Arte dos Indomados, a origem dos chifres sempre esteve associada à dualidade. Leste e Oeste, Sol e Lua, Esquerda e Direita.
Por esse motivo, deuses duais também eram associados a esse arquétipo, ainda que não possuíssem chifres. É o caso de Janus e Culsans, que também eram abridores de portais, e abridores de caminhos.
Novos Significados no Século XX
Essa origem neutra, no entanto, acabou se perdendo no passado. Para qualquer um que cresceu em uma cultura abraâmica durante o último século, chifres estão profundamente conectados com maldade. Uma prova disso é minha impressão imediata, ainda como criança, ao assistir A Lenda. Não era possível que aquele cara com aqueles chifres enormes fosse nem ao menos neutro. Estava óbvio que era a própria personificação do Mal.
E é por isso que mitologias mais recentes já levam isso em consideração. Como um exemplo, a Mão de Cinco Dedos de Éris, um dos símbolos do Discordnianismo, pode ser vista como “duas flechas opostas convergindo em um ponto em comum”, ou como um par de chifres anulados por um outro par de chifres invertidos. Como há essa anulação, qualquer possível interpretação satânica ou maligna fica descartada.
É estranho, e até um pouco triste, constatar que a imposição das culturas monoteístas acabou por definir que (de fato, ainda que não de direito) os chifres são, sim uma coisa terrível. E é por isso que é importante conhecer a origem histórica dos símbolos – esse é o tipo de conhecimento que nos torna menos propensos à manipulação.
Se quiser se aprofundar no assunto, aqui vão algumas dicas de leitura. Liber Null e Psiconauta, de Peter J. Carroll, explica em detalhes o conceito de Baphomet, o grande espírito chifrudo (e escamado, e peludo, etc.), e as formas que assumiu em cada uma das eras da história humana. A Arte dos Indomados, de Nicholaj de Mattos Frisvold, trata das origens históricas e linguísticas ligadas ao símbolo dos chifres, em diversas culturas do mundo. O Principia Discordia, na página 00021, explica em detalhes o simbolismo da Mão de Cinco Dedos de Éris. Todos esses livros estão disponíveis na loja da Penumbra Livros, ou nas grandes livrarias.