Todo mundo já ouviu falar do célebre Dr. John Dee. Astrólogo da Rainha Elizabeth I, matemático, jurista, filósofo, alquimista, hermetista e criador do sistema de magia Enoquiana. John Dee viveu no século XVI, e foi um grande influenciador do Renascimento Inglês – o movimento que deu origem a figurinhas ilustres como William Shakespeare, Francis Bacon e Christopher Marlowe. Enquanto esses outros artistas ficaram conhecidos por sua obra literária (poética, teatral, dramática, filosófica), John Dee é lembrado até hoje por ter sido um grande mago.
Tem alguma coisa errada aí. Se ele era um grande mago, na Europa, durante o século XVI, ele não deveria ter sido queimado na fogueira?
Os Atos de Feitiçaria da Inglaterra
As coisas não estavam fáceis no cenário religioso da Inglaterra do século XVI. Havia um bocado de tensão religiosa, basicamente por conta das várias vertentes de cristianismo brigando por poder nos altos escalões do governo. E quem tinha a autoridade (o Rei) decidiu criar leis que fossem, é claro, favoráveis ao seu grupo favorito.
Até então, bruxaria não era um crime comum, e sim um delito eclesiástico. Os acusados eram julgados por tribunais da Igreja (tecnicamente não eram a Inquisição), e não pela justiça comum.
Ato de Feitiçaria de 1542
O adorável Rei Henrique VIII (que também era o líder da Igreja Anglicana) criou uma lei que punia com a morte aqueles que praticassem:
exorcismo, feitiçaria, encantamento, (…) feitiço (…), consumir o corpo de qualquer pessoa, elemento ou deuses, provocar ilicitamente qualquer pessoa a amar, desprezar Cristo, (…) derrubar qualquer Cruz
Basicamente qualquer coisa que não fosse estritamente cristã. Quanto mais Anglicano melhor. Ainda bem que em 1547, o mais simpático Eduardo VI suspendeu essa lei.
Ato de Feitiçaria de 1563
A Rainha Elizabeth I era muito mais tolerante com práticas mágicas, mas precisava botar ordem na casa. Ela criou uma nova lei que previa pena de morte apenas para as práticas de bruxaria que causassem morte ou destruição. O que é bem razoável, considerando que causar morte e destruição sem magia também deveria ser configurado como crime.
Jovem John Dee, garoto problema na faculdade
John Dee vinha de uma família rica. Seu pai era cortesão do Rei Henrique VIII (o mesmo que criou a lei maluca da pena de morte), e ele mesmo clamava ser descendente distante de um príncipe de Gales. Sendo assim, ele pôde receber educação da melhor qualidade.
Dee frequentou a universidade de Cambridge entre 1542 e 1546. Se você prestar atenção, vai perceber que isso foi justamente no curto período em que a lei anti-bruxaria de 1542 estava valendo. Tempos difíceis para quem se interessava pelo oculto.
Mesmo assim, o jovem John Dee resolveu aproveitar a ampla biblioteca de Cambridge para estudar nada menos do que dezoito horas por dia. Sim, é isso mesmo. Como muitos gênios ao longo da história, Dee só dormia quatro horas por dia. Reservava duas horas para as refeições. O resto era estudo. (Desnecessário dizer, na época não havia preocupações bobas como exercícios físicos, vida social e higiene pessoal, o que facilitava um pouco o gerenciamento do tempo.)
Com dezoito horas diárias de estudo e grande parte dos livros disponíveis no “mundo civilizado” ao seu alcance, John Dee pôde se dedicar aos estudos de alquimia e hermetismo. Repare um pequeno detalhe na lei de 1542: estudar não era crime, e Dee tirou vantagem disso.
Mesmo assim, quase foi enquadrado por feitiçaria. E justamente por um ato completamente científico. Ele projetou e construiu um besouro mecânico, para uso como elemento cenográfico em uma peça de teatro. O resultado foi tão inacreditável, tão vivo, tão real, que diziam as más línguas que não era tecnologia, era feitiçaria. E por pouco John Dee não foi enquadrado por algo de que era inocente.
Dee na Corte Britânica
O recém-formado John Dee, já versado nas mais distintas artes, era muito procurado por seus conhecimentos. Viajou pela Europa e conheceu quase todos os grandes filósofos, cartógrafos, matemáticos e cientistas de sua época. Suas palestras em Paris sobre Euclides lotavam, sempre. Era uma pequena celebridade. De volta à Inglaterra, seguiu os caminhos do pai cortesão, e foi apresentado ao Rei Eduardo VI (a pessoa razoável que suspendeu a lei de Henrique VIII).
Ele até se dava bem com Eduardo VI, e não havia nenhuma lei anti-bruxaria na época. Mas esse rei não ficou muito tempo no trono, sendo substituído pela infame Rainha Maria I. Essa simpática monarca queimou na fogueira quase 300 dissidentes religiosos, o que rendeu a ela o apelido de “Maria Sangrenta”. (Maria I sobrevive até hoje em nossas memórias, na forma de um drink de gosto duvidoso.) E se centenas de pessoas foram parar na fogueira durante seu curto reinado, é claro que John Dee não iria passar incólume.
John Dee, o Conspirador
Diz o ditado que é impossível agradar a todos. John Dee certamente não agradou a Maria I. Ela deu um jeito de acusá-lo legalmente, com a alegação de “calcular e conjurar para enfeitiçar a Rainha”.
Mesmo não havendo leis anti-bruxaria vigentes nesse exato momento, conspiração contra a realeza é sem dúvida um crime em qualquer monarquia que se preze. John Dee passou meses na cadeia. Mas acabou sendo solto.
No Reinado de Elizabeth I
O reinado de Maria I também não durou muito, e logo sua irmã, Elizabeth I, assumiu a coroa. (Importante ressaltar que, a despeito da idade avantajada e da semelhança dos nomes, Elizabeth I não era a mãe da atual Rainha da Inglaterra, Elizabeth II.) E foi aí que John Dee se deu bem.
Elizabeth I era muito mais flexível quando o assunto era magia, bruxaria ou religião. Para começo de conversa, ela não queimou centenas de pessoas, ao contrário de sua irmã. Em segundo lugar, foi ela quem criou a lei de 1563. Na verdade, ela gostava do negócio.
Quando ficou claro que Elizabeth I seria a nova Rainha, ela pediu para John Dee, a quem já conhecia, para calcular astrologicamente a data mais propícia para sua coroação. Depois de coroada, acolheu Dee como seu astrólogo real, e lhe passou algumas missões importantes. Entre elas, revisar o calendário vigente (não é pouca coisa!), e anular magicamente os efeitos de uma possível “magia negra” feita contra ela: um quadro com sua imagem, perfurado por um prego no coração.
Era tudo de que nosso herói precisava: uma monarca que não apenas não iria prendê-lo e queimá-lo, mas que pagaria suas contas e daria relevância ao seu trabalho. E assim começou, de fato, a carreira de um dos maiores magos da história. Mas isso é assunto para um outro dia.