Por Vinicius Ferreira, editor da Penumbra Livros
Em algum momento da história do Brasil, a produção nacional de quadrinhos chegou realmente a ser ruim. Ainda bem que esse tempo passou. Hoje temos um monte de brasileiros fazendo bonito nas grandes editoras gringas e ganhando prêmios mundo afora. Temos também muita produção de qualidade no mercado nacional – mesmo que não apareça na mídia. Mas ainda assim, existe um grande preconceito – se foi brasileiro que fez, não presta. E dá um gostinho de vitória quando aparece um título para calar a boca de quem acha que brasileiro não faz nada que preste. É exatamente o caso de O Despertar de Cthulhu em Quadrinhos.
A Arte
As oito histórias que compõem O Despertar de Cthulhu em Quadrinhos são assinadas por artistas diferentes. Isso confere à obra uma variedade estilística muito grande – tanto nas ilustrações quanto no roteiro. Em comum há o artifício do uso do verde – toda a revista é feita em branco, preto e verde. Um verde radioativo que não é a cor que caiu do céu, mas combina muito bem com o tema. Uma técnica parecida já havia aparecido no excelente O Rei Amarelo em Quadrinhos, também da Editora Draco.
(Já foi confirmado que essa trilogia de coletâneas de horror cósmico será encerrada com um último volume sobre os Demônios da Goetia, ilustrada em preto, branco e vermelho!)
Sendo um fã da obra de Lovecraft, tenho muitas ressalvas sobre qualquer representação gráfica das criaturas monstruosas de suas histórias. Inclusive, acho ótimo que não tenham inventado até hoje de transformar seus contos em superproduções hollywoodianas estrelando Tom Cruise. Acho que o mais legal é o fato das descrições serem vagas – tudo fica mais sinistro no escuro, nossa imaginação se encarrega de preencher as lacunas da forma mais terrível para nós. A falta de detalhamento faz com que o terror se torne individual. E, por isso, foi com um misto de empolgação e pé atrás que comecei a ler O Despertar de Cthulhu em Quadrinhos.
Meu veredito? Apesar de haver, sim, representações gráficas explícitas de criaturas lovecraftianas em sete das oito histórias (e horror gráfico de outra natureza na oitava), isso não me incomodou. Na verdade, acho que esse artifício foi usado de forma muito competente, em todos os casos. A narrativa poderia seguir outro caminho? Claro que poderia. Mas acho que foi uma jogada ousada, e os artistas e roteiristas acertaram em cheio.
Brasilidade
O pessoal que critica a produção artística nacional costuma achar (mesmo que de forma subconsciente) que toda obra nacional cai em uma de três categorias: a categoria Favela e Violência (ex.: Cidade de Deus, Tropa de Elite), categoria Sertão (ex.: Ariano Suassuna, Jorge Amado) ou categoria Brasil Surreal (ex.: novelas do Manoel Carlos). Qualquer um com um mínimo de bom senso, no entanto, sabe que não é bem assim.
O Despertar de Cthulhu em Quadrinhos consegue colocar uma bela dose de brasilidade na obra universal (por que não dizer, transdimensional) de Lovecraft, sem cair nos clichês supracitados.
Responda com sinceridade: do ponto de vista narrativo, qual é a diferença entre um vilarejo isolado na Nova Inglaterra, terra natal de Lovecraft, e uma cidadezinha enfiada nos cafundós de Minas Gerais? Entre um grupo isolado vivendo nos pântanos da Louisiana e uma tribo indígena com costumes peculiares? Entre cultistas malucos e evangélicos extremistas? É com esse tempero que os autores conseguem transportar a obra de Lovecraft para um cenário inegavelmente brasileiro. E a mistura dá muito certo.
Mas é só Brasil?
Não. Algumas histórias poderiam ser em qualquer lugar. Uma parece ser no Japão (mas poderia não ser). Uma se passa certamente na Inglaterra. E sobre essa, há algo particularmente interessante a se mencionar.
Sem spoilers, Os Tambores de Azathoth mostra um Aleister Crowley em 1946, no final de sua vida, sendo assessorado pelo jovem Kenneth Grant (que foi seu secretário particular), em uma conversa interessantíssima com Oppenheimer, um dos inventores da bomba atômica. Essa relação entre os mitos lovecraftianos e a obra de Aleister Crowley está descrita detalhadamente em O Renascer da Magia, do próprio Kenneth Grant, mas é a primeira vez que vejo esse aspecto específico ser representado na ficção. E fica um alerta: o final dessa história, em particular, explodiu a minha cabeça.
New Weird?
Só porque Lovecraft foi um expoente da Weird Fiction, isso quer dizer que qualquer coisa inspirada na obra dele cai no gênero New Weird? Bom, eu não gosto dessa expressão, para começo de conversa. Acho que não define nada. E mesmo se definisse, não acho que as histórias de O Despertar de Cthulhu em Quadrinhos se enquadrariam nesse gênero. Terror, simples e puro, parece mais adequado. Zero por cento ficção científica. Acima de tudo, são boas histórias bem contadas.
Semelhanças
Trata-se de uma obra bastante única, mas se eu tivesse que comparar com alguma coisa que já foi feita, eu diria que o melhor parâmetro de comparação seria o Neonomicon, de Alan Moore. E francamente… Eu sou fã do Sr. Moore. Não faço esse tipo de comparação à toa. Acho que isso diz algo sobre a qualidade da obra. Se você gosta de quadrinhos de terror (nacionais ou não), ou de Lovecraft, O Despertar de Cthulhu em Quadrinhos é uma ótima dica. Se gosta dos dois, é uma obrigação moral.
Outra dica de quadrinhos baseados na obra de Lovecraft é o excelente Providence, também de Alan Moore. O Renascer da Magia e Aleister Crowley e o Deus Oculto são duas obras ótimas que exploram a relação entre Lovecraft e o ocultismo de forma mais séria.
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Veja também:
Religião Pop Comparada – Cthulhu vs. Sonho dos Perpétuos
O Necronomicon Existiu de Verdade?
O Legado de Kenneth Grant – Aossic e Crowley
O Legado de Kenneth Grant – Arte, Lovecraft e o Oculto