OM#1 - Musicalidade e Mediação

OM#1 – Musicalidade e Mediação

Texto: Rodrigo Édipo

Arte: Herbert Baglione

 

inúmeras mortes num espaço-tempo de 4 horas (…)

a força corporificou a partir da primeira chamada entoada pelo guia. os sentidos ficaram confusos, a visão turva, as mãos suadas, o corpo todo apresentou dormência, a mente acelerada, desordenada, sem filtro. tudo estava sob controle. luto contra, não aceito, o apego à normose é uma grande ilusão, é uma mentira, aprisiona, fere e decepciona. a imagem do pai-nosso vem à mente. esboço uma reza, não consigo chegar até o final. tento mais uma vez e desisto. era necessário entrar em um estado meditativo, seja lá através de qual ferramenta. investi nos pranayamas, aprendi que enquanto a respiração não está vibrando de forma regular, a mente continuará em descompasso. me culpo por pagar e não frequentar. me culpo por muitas outras coisas. quero mandar um e-mail, pedir desculpas por uma palavra mal dita no chat, fazer ligações, penso na morte dos meus pais, no sorriso da minha mãe em close, ela mais jovem. fecho meus olhos, improviso a posição de savasana em cima da cadeira, peito aberto, braços relaxados, mãos pra cima, pernas esticadas. é preciso abrir mão daquilo que precisa ir, liberar as toxinas, abrir espaço para os pequenos milagres. a pressa sempre será inimiga. relembro que a lua tava cheia e, enfim, aceito.

o ayahuasca é impulsionado pelo som, pela música, por um assobio (..) a sua capacidade de transportar o som, incluindo o som da voz, para o espectro visível indica que algum tipo de membrana de processamento de informação ou limite está sendo ultrapassado pela sua farmacologia. Experiências acústicas tornam-se contemplações (…)

 

t.mckenna

a fila formada atrás de mim era do tipo indiana e o copo americano já estava até a metade quando ele perguntou:

– quantas vezes você já bebeu?
– (…)

no momento que antecede a ingestão é possível perceber um silêncio respeitoso que preenche a paisagem sonora do ambiente. um silêncio polifônico de vários gritos dissonantes. até a estridência dos machos-cigarra deu um tempo naquela fração, por mais que continuassem ensurdecedores matagal à dentro. é preciso me enquadrar. no entorno existe hierarquia, padrões, regras de conduta, monocromatismos. não existe julgamento. existe muito amor. muito amor. fé, muita fé. aos que crê, é uma bebida sagrada, um enteógeno. um chá que significa passaporte para um plano superior que possibilita o acesso a uma sabedoria divina. força estranha para uns, para outros um espírito-planta que nos conduz para a lucidez da consciência. uma planta-professora. escola, pra quê?

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(protocolo)

expansão da escuta, aprofundamento espiritual e autoconhecimento. materialidades sonoras e energéticas que vão além daquelas usuais que nos limitam, segregam, elitizam e transformam em mercadoria a nossa audição. Espectros abertos e livres para um bom passeio, um rolezinho com pessoas que realmente importam e se importam com você, é possível não só ver, como também sentir a presença de cada uma delas. por vezes sem parar, outras vezes descontinuadamente. musicalidades que se apresentam como mediadoras dos saberes espirituais transmitidos pelos mestres. silêncios, orações, chamadas, cantos e fonogramas. na parede a foto de um mestre seringueiro indígena posando ao lado de uma vitrola de vinil. um bruxo brasileiro contemporâneo, com feições nordestinas, de olhar penetrante e muito seguro. traz verdades e nos impulsiona pra luz, pras cores, pros amores.

deus é uma viagem

 

f.catatau

deixo escapar um sorriso nervoso daquele que vem do nariz e não da boca, no que respondo à indagação e ele preenche praticamente 100% do copo. esta seria a quinta vez que beberia o chá, muito pouco comparado a alguns que já completam quatro décadas ininterruptas de imersão. o som do líquido de cor marrom e cheiro forte delineando o espaço que restava do copo ativou instantaneamente dentro de mim um respeito profundo, ali eu já estava curvado à força da natureza que tanto estamos condicionados a desmerecer. as mãos já suavam e o corpo tremia quando lembrei mais uma vez de focar na respiração e a ansiedade foi passando aos poucos. a partir daí já era possível ouvir conversas paralelas, algumas achei até que eram sobre mim. o que só confirmava que meu ego precisava de um empurrão.

volto à minha cadeira de origem, pois foi definido um lugar. temos a permissão de sair e voltar quando houver alguma necessidade fisiológica. náuseas, vômitos ou necessidades gastrointestinais são comuns e são vistos de forma positiva, representam limpeza. sons de vômito do início ao final fazem parte da identidade sonora, a indisposição pode vir do sabor da bebida ou dos percalços mais profundos da alma que envolve a ética e a lealdade com si próprio e com o entorno. ao meu lado percebo um casal mais ou menos da minha idade formado por um homem e uma mulher. estão com um bebê de colo todo agasalhado. faz frio, aproveito e visto meu moletom para encarar as quatro horas de ritual. estamos numa palhoça construída no meio do mato, nela existe um altar com uma mesa onde a bebida é servida.

o silêncio é rompido pelo som, e temos a manifestação do om

a seiva alaranjada que me conduziu por uma trilha incrível e irreconhecível foi se transformando em uma árvore alta e frondosa formada pelo mariri e a chacrona entrelaçados. força e luz dançando em padedê. pai e mãe. eu e bruna. ela vestida de rainha com um lindo sorriso no rosto, com lantejoulas amarelas e vermelhas, renovação dos laços matrimoniais sem cobranças de desamor. cura. celebração em olinda, chá de planta com amigos-família, plantio e colheita coletiva pra quem quiser chegar junto. são cinco indiozinhos, em forma de desenho animado, de mãos dadas, trotando no mesmo compasso, todos com sorriso no rosto, vão embora num campo verde, lindo, vasto e saudável. uma sensação de quase-morte, já não sabia onde estava e tive medo, abri os olhos para saber se estava vivo. que bobagem, atrapalhei tudo. a vontade de controlar os fatos é um vício que precisa ser extirpado da sociedade. acabariam as guerras, os muros, as segregações, as cobranças, as expectativas, os julgamentos. nos importaríamos mais com a mística silenciosa das águas, entraríamos na vibração da presença que deus educa através da natureza, contemplando o tempo como ele realmente é, com a paciência de jó, e expandindo nossos espaços com a vastidão da nossa consciência e do amor incondicional. a quase-morte virou quase-choro. decido dar um tempo…

…no retorno pra casa, já com os faróis ligados, avistamos duas raposas farejando o chão. me vi ali.

 

Publicado originalmente no Outros Críticos.

 

Sobre o Autor:

Rodrigo Édipo é nascido e criado em Olinda (PE), fez mestrado em Ciências da Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), membro do INCITI – Pesquisa e Inovação para as Cidades (UFPE), voluntário no movimento love.fútbol, fundador da Mi-Independente, colaborador no Outros Críticos e coletivo B U T U K A. Você pode conhecer mais de seu trabalho no outroscriticos.com.

 

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